Os fantasmas de Virginia Woolf

À primeira vista, Ao farol é um romance sobre a história de uma família e sua propriedade em uma ilha em terras escocesas.

Em um belo final de tarde James, um dos filhos do casal Ramsay, deseja fervorosamente que o dia seguinte amanheça com tempo bom, o que tornará possível um passeio de barco com seu pai e amigos até o farol, localizado na entrada da baía, a uma certa distância. O passeio não acontece, passam-se dez anos e a família já não é mais a mesma, devastada por mortes, afetada pela guerra, assistindo à ruína do período vitoriano e à chegada de uma modernidade na qual aquele modelo de família já não encontra lugar.

À primeira vista, esse é o fio da história do romance de Virginia Woolf, publicado imediatamente após Mrs. Dalloway, uma de suas obras-primas, já resenhado aqui.

Ao farolAo farol é um acerto de contas com o passado de Woolf. E isso eu só consegui descobrir graças à belíssima edição da Autêntica, lançada entre nós em 2013, agora em segunda reimpressão, com tradução e notas de Tomaz Tadeu e um belo e elucidativo ensaio de Hermione Lee. Esta nos conta o quanto de autobiográfico existe nas páginas do romance. E o quanto há de expiação da relação da autora com os pais, então já mortos, a ponto dela ter declarado, a respeito de Ao farol, que escrever o livro foi o que mais próximo que ela chegou de se submeter a um processo de psicanálise.

Virginia perdeu a mãe em plena infância. E conviveu anos turbulentos com um pai difícil, autoritário e distante. Quando este também morreu, no começo do século XX, a menina, já adolescente, enfrentou o mundo conflituosamente na companhia dos irmãos e meio-irmãos. Mas as marcas desse passado, em sua cabeça, só foram deixadas de lado com a escrita do romance, já nos anos 1920.

A história de Ao farol tem diversos pontos de contato com a vida de Virginia. Além da figura dos pais se assemelhar à “vida real”, a casa de veraneio em uma ilha, repleta de convidados, os oito filhos do casal, empregados, trabalhadores rurais, pescadores, as conversas dos adultos sobre política, os sinais de que grandes mudanças estavam por vir na estrutura da sociedade britânica são elementos que fazem parte do repertório do livro e coincidem com vida familiar de Woolf.

Ao farol é narrado em três partes muito distintas. No capítulo inicial, o mais longo, os acontecimentos se desenrolam em poucas horas, entre um fim de tarde e um jantar cercado de tensão entre os convivas da casa dos Ramsay. Ali conhecemos a personalidade conciliadora e encantatória da Sra. Ramsay e a vemos em contraposição a um profundo autoritarismo do marido, um professor universitário decadente, autor de um glorificado livro de pensamentos, preso a uma glória efêmera e inseguro quanto a seu papel em um mundo que começa a se transformar. Estamos nos primeiros anos do século XX.

Nos preparativos para  o jantar, conhecemos os convidados e aqueles que transitam em torno daquela casa. Lordes, professores, poetas, homens solitários e possivelmente homossexuais, mulheres da nobreza, uma artista, uma jovem casadoira, os filhos do casal, os empregados e empregadas da casa. Os pensamentos vão se mostrando, compondo o quadro de uma sociedade que parece parada no tempo, vivendo em suspensão, e sabendo estar à beira do abismo.

Uma ruptura genial no segundo capítulo, marca um salto de uma década nos coloca já no pós Primeira Guerra. Esse capítulo, aliás é apontado por muitos como um dos marcos do surgimento e consolidação do romance modernista. A casa já não está cheia. Pessoas morreram na guerra, amigos da família, parentes. E também a Sra. Ramsay, cuja morte não é explicada, como não foi a da mãe de Virginia.

E entramos na terceira parte, quando o Sr. Ramsay resolve reabrir a casa, chamar os velhos amigos. E finalmente leva o filho James e a filha Cam para uma visita ao farol. Este capítulo tem uma narrativa paralela carregada de simbologias e tensão. De um lado, em terra, Lily, uma pintora medíocre tenta concluir uma tela que deixou em suspenso há mais de uma década. Na casa, ela sente os fantasmas do passado, percebe a onipresença da Sra. Ramsay

De outro, sob o olhar severo dos filhos, o Sr. Ramsay, pleno de soberba, comanda a navegação até o farol. Cam, a filha mais nova dos Ramsay, olha para o pai com a certeza de estar diante de um déspota. O irmão, frustrado no passeio de dez anos atrás, já não tem o menor entusiasmo por aquela navegação. O mundo dos adultos ruiu em uma década e aqueles irmãos apontam para um futuro em que a jovem Cam não terá o papel submisso de sua mãe. E no qual James já não mais será o herdeiro de uma tradição. Virginia Woolf narra nas entrelinhas da história uma ruptura radical de costumes e da política britânica, antecipando, quase que profeticamente, a maior dessas rupturas, ainda por vir com a Segunda Guerra.

No ensaio de Hermione Lee descobrimos o processo criativo em torno da obra, que está publicado em livro, aliás. Virginia Woolf escreveu um primeiro manuscrito, tendo começado os argumentos  a partir dos apontamentos feitos para a festa de Mrs. Dalloway. E não é de se estranhar que a narrativa vá flutuando entre os pensamentos dos diversos personagens.

A primeira versão, além de estar mais explicitamente ligada aos fatos de sua família, tem também um maior conteúdo político. Na versão final, Woolf suaviza a presença dos dados da conjuntura que orbitava em torno do grande jantar oferecido pela Sra. Ramsay aos convidados da casa de praia. E acha uma linguagem que abusa, com genialidade, de parênteses e colchetes para marcar alternâncias entre a linha de pensamento dos personagens e dados banais, como a chegada de uma pessoa, um barulho que vem de fora, uma fala corriqueira, como “me passa o sal”.

Encantado com Virginia desde a leitura de Mrs. Dalloway, passando pelo belíssimo As ondas, fico com o coração balançado para dizer qual é o meu preferido. Talvez tenha de ler mais Virginia Woolf para me decidir, se é que há um melhor.

P.S. na ausência de orçamento para ir à Escócia fotografar um farol, usei esse de Olinda.  Um farol é um farol, ora.

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