A casa da memória

 

“Claro que não há nada mais ridículo do que a pretensão de registrar a própria vida. Você imediatamente vira um clown.”

Logo no começo do primeiro volume dos Diários de Emilio Renzi o autor, Ricardo Piglia  apresenta o livro com essa frase, atribuída, segundo ele, ao próprio Emilio Renzi. Em pessoa.

Acontece que Emilio Renzi é (ou foi) ninguém menos que Ricardo Piglia, escritor argentino de renome, morto em 2014, cujo nome de batismo era Ricardo Emilio Piglia Renzi. Começa aí um jogo com o leitor, que vai fingir acreditar que as 383 páginas que virão a seguir, assim como os outros dois volumes do caderno devem ser atribuídos ao tal Emilio Renzi.

Se você conhece um pouco da obra de Piglia, saberá que Renzi aparece em vários livros como um alter ego do escritor. No caso dos Diários, o recurso é adotado de forma a criar um distanciamento entre o autor e a sua mais complexa obra: a edição de centenas de cadernos que escreveu compulsivamente, à mão, ao longo de três décadas.

Emilio RenziLi o primeiro volume, Anos de formação, que tem os diários escritos entre 1957 e 1967. O livro foi publicado no Brasil em 2017, pela editora Todavia, e eu li a edição para Kindle, com ótima tradução de Sergio Molina. Mas já estou pensando em atacar o segundo volume direto na fonte, em espanhol.

Confesso que cheguei ao livro pela profusão de comentários nas redes sociais, que transitavam entre elogiosos e maravilhados. Vinham de pessoas altamente gabaritadas, de quem eu aceito conselhos de leitura, como Schneider Carpeggiani. Mesmo assim, comecei a leitura um tanto desconfiado, até porque o jovem Emilio Renzi começou a escrever seus diários no fim da adolescência. E, como todo adolescente, ele é um porre. Arrogante, presunçoso, ou, como descobri depois, absolutamente seguro de que viria a ser escritor, mas, no fundo um jovem cheio de pirações, dúvidas, inseguranças quanto ao futuro.  É preciso ter um pouco de paciência para não achar que se trata apenas de um conjunto de anotações de um menino mimado, na província de Buenos Aires. Você vai avançando e os diários te envolvem, por vários motivos.

Nesse primeiro volume, o subtítulo já deixa claro que vamos acompanhar o pensamento de um escritor em formação. Ele conta um pouco de seu roteiro de leituras, mostra suas influências, relata – provocando uma inveja mortal – encontros com Borges, cartinhas recebidas de Cortázar, debates com outros jovens que desejam seguir pelo caminho da escrita, como Saer. Também releva seu processo criativo, as crises e angústias, os prazos não cumpridos, os primeiros contratos com editoras e a pressão para a entrega dos originais. É uma leitura fascinante para quem ama literatura. Em muitas passagens anota ideias para contos ou romances que, de fato, se tornarão alguns de seus livros mais conhecidos, como o que deu origem ao filme Plata Quemada.

Mas os diários vão muito além. Sexualidade, família, política, violência, a busca do dinheiro para a sobrevivência, visões de mundo, filosofia. Tem de tudo um pouco. Dá pra numerar um bocado de temas pelos quais Renzi vai passeando, em anotações que às vezes se repetem com distância de meses, com mudanças sutis no entendimento de determinadas questões, mostrando também o processo evolutivo do homem e do cidadão.

Desde a conturbada relação com o pai, um militante fanático do peronismo, passando pela figura um tanto caricata do avô, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, até a relação com primos e primas, tios e parentes distantes, assistimos a um jovem que vai buscando o caminho da fuga e do isolamento. Emilio Renzi não era um moço de família e passou boa parte de sua juventude saltando de quarto em quarto de pensões e hotéis distantes da cidade natal, onde morava o avô, e de Mar del Plata, para onde foram os pais.

Renzi viveu a política intensamente. Até a página dois. Ao ingressar no curso de História se aliou a movimentos radicais da esquerda, mas buscou independência intelectual em relação a esses movimentos e um distanciamento do peronismo, coisa difícil para qualquer argentino que gostasse de política naqueles anos. As citações à conjuntura politica de uma conturbada Argentina aparecem aqui e ali, nos diários. Momentos agudos, como o Golpe de Estado que derrubou Perón são relatados. A perseguição a alunos e professores da faculdade onde se formou e lecionou, em La Plata, mostram o caldeirão em que vivia.

A sexualidade é um capítulo à parte. Revelam um jovem em busca de uma paixão em um período em que começa a revolução de costumes. A primeira transa, as putas, as relações passageiras, uma primeira namorada pra valer e uma uruguaia liberal que entra em sua vida e o deixa atônito em meio a crises de ciúmes e orgulho de macho. Renzi não tem meias palavras para escrever sobre sexo, embora os relatos não sejam explícitos.

Em meio a milhares de páginas de livros devoradas semanalmente, preparações de aulas, tentativas de escrever seus contos, o jovem Emilio vive entre dias de agitação e semanas de marasmo, preguiça e momentos agudos de paralisia criativa. Isso, é claro, se reflete em sua vida financeira, em geral arruinada. Passa noites sem fim à base de uma maçã e toma doses de álcool em profusão, buscando no dia seguinte alguns pesos que garantam a sobrevivência até o final do mês, embora, às vezes, se tenha a sensação de que há uma carga extra de dramaticidade, afinal, é o diário de um escritor.

É nesse ponto que entra o tema da memória. Como a genial Natalia Ginzburg, em seu Léxico familiar (resenhado aqui) ressalta, “a memória é lábil, e (…) os livros extraídos da realidade frequentemente não passam de tênues vislumbres e estilhaços de tudo o que vimos e ouvimos”.

Ricardo Piglia constrói uma casa da memória em seus cadernos. Atribui a autoria a um arquiteto, que é seu duplo. Ergue a construção, muda o projeto, retoca aqui, derruba uma parede ali e constrói mais cômodos. Os diários têm uma intencionalidade e, em várias passagens ele deixa claro que está escrevendo “para daqui a trinta anos”.

Toda memória tem um lado, um viés. E mesmo a anotação feita no calor dos fatos está carregada de imprecisões, omissões e eleições. Anos de formação: os diários de Emilio Renzi é o primeiro andar do edifício das memórias de Ricardo Piglia. Volto logo para falar do segundo estágio.

 

P.S.: na foto, o Café Tortoni, onde às vezes Renzi tomava umas.

7 comentários sobre “A casa da memória

  1. Excelente resenha, Carlos. Escrita límpida e sedutora. Daquelas que nos fazem querer ter o livro em mãos de imediato. Vou consultar meu porquinho de cerâmica para ver se posso comprá-lo. Adoro relatos de escritores e suas aventuras em torno desse prazer e tortura que é o ato de escrever. Embora eu seja apenas uma reles jornalista cultural, conheço bem as beiras desse problema. Especialmente prazos e a tal angústia da página em branco. Abração

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    1. Obrigado pelo comentário e pelos elogios, Angélica. Os diários são mesmo envolventes. É uma leitura e tanto. Depois de ler, venha comentar suas impressões. Abraço.

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