Rapsódia do Sertão

Comecei a ler Solo para vialejo, de Cida Pedrosa, sem saber o que esperar. Ela já tinha sido agraciada com o Prêmio Jabuti de melhor livro do ano (2020) e acabara de ser eleita vereadora do Recife, pelo PCdoB, quando a CEPE Editora me enviou o livro. Sei que tenho dito muito isso ultimamente – “comecei a ler sem saber nada sobre” – mas é que nesse caso a ignorância foi deliberada: busquei mesmo não ler críticas e resenhas para sentir o texto da forma mais livre possível. Foi uma boa estratégia.

Quando um leitor faz algo assim, abre o livro esperando encontrar o que sempre encontrou. Mas entrei em Solo para vialejo como quem entra num lugar muito escuro vindo de outro com muita luz – tateando, sem saber bem o que havia ali; devagar, para não tropeçar em nada. Aos poucos, o olhar foi se acostumando à luminosidade possível, até finalmente estar ambientando o suficiente para perceber os caminhos e andar com mais segurança.

Eu esperava encontrar poemas isolados, cada um circunscrito a uma página, ou pouco mais de uma, mas de toda forma com início e fim bem delimitados. Por não saber o que estava olhando, foi isso que vi. Na minha folha de anotações, fui marcando o que achava de interessante em cada “poema”: no “primeiro”, por exemplo, notei que Cida já imprimiu um tom musical, concreto, que já indicava temas como o som, a terra e a infância que – inferi – estariam presentes ao longo de todo o livro.

No “poema seguinte”, achei genial o termo sol sustenido, amarrando a música à geografia – e quem já esteve alguma vez no Sertão há de concordar que aquele sol, naquele céu, não pode ser nada menos do que sustenido (emJunho, canção de Alceu Valença musicada a partir de um poema de seu tio Geraldo Valença , fala-se no “berro desses céus”).

Até mais ou menos a página vinte e pouco, eu ainda acreditava estar diante de poemas isolados mas muito bem encadeados – e anotei um elogio ao trabalho de edição, a cargo de Wellington de Melo. Aos poucos, com o olhar se acostumando àquela nova luminosidade, o livro então foi ganhando contornos marcados, e só então percebi a beleza da coisa toda: desde o começo, eu não estava lendo poemas isolados, mas uma única poesia, épica e ao mesmo tempo individual, uma espécie de gênese pessoal de um Sertão marcado pela história e grávido de mundo.

Pois o longo poema Solo para vialejo  parte do movimento de povoamento do Sertão, marcado pela fuga da população escravizada e pelo massacre dos indígenas. Vai alternando contextualização histórica, geográfica e ecológica – inevitável lembrar de Os Sertões, de Euclides da Cunha – ao mesmo tempo eivada de lembranças pessoais da autora, que vão e vêm como num rádio em que se passeia pelo dial. A música do século XX têm importância crucial no texto, como tema e como inspiração estética.

Dessa forma, a história do Sertão pernambucano acaba se cruzando com a do Sul dos Estados Unidos, que tem em comum a presença da população negra em condições adversas e o cultivo do algodão em monocultura. Dos lamentos e canções de trabalho surge o Blues que acaba aportando em Bodocó, cidade natal de Cida Pedrosa, não só no rádio como nos bailes animados pela Jazz Band União Bodocoense, cuja foto em preto e branco ilustra a capa do livro.

Bob Dylan, Luiz Gonzaga, Wanderléa, Jackson do Pandeiro, Roberto e Erasmo Carlos, Creedance Clearwater e Waldick Soriano são algumas das personalidades da música evocadas ao longo do poema-livro.

O algodão une Bodocó ao Blues, mas não só: a flor que se abre em flocos de fibra também é mote para que o poema lembre as mulheres do sertão, as que fiam, tecem e ocupam – como no mundo inteiro – lugares pré-determinados e muito menores do que suas vontades.

uma mulher que fia
fia armaduras para sois tristes
fia o acalanto para madrugadas rasas
fia o orvalho para manhãs natimortas

Solo para vialejo é também um enorme poema concreto, que se faz na forma meticulosa como cada página é apresentada e, dentro de cada página, cada linha.

Enfim, Prêmio não é tudo, claro. Mas quando faz mais gente descobrir uma obra dessas, já valeu a pena. A CEPE, é bom a gente lembrar, é a editora pública do Governo do Estado de Pernambuco, responsável pela edição do Suplemento Pernambuco, da Revista Continente, e de vários livros maravilhosos que temos resenhado por aqui. Sim, uma editora pública e feita de muita balbúrdia.

Curtiu? O livro está à venda no site da editora, por apenas 25 Golpes.

4 comentários sobre “Rapsódia do Sertão

      1. E está liberado novamente, Renata. A Cepe liberou 10 ebooks – até o final de abril – e Gris está na lista =)

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