Dois livros de ficção. Um, baseado em fatos reais, outro, de pura imaginação do autor. Um de Portugal, outro, brasileiro, do Ceará. Em comum, as vidas invisíveis no universo LGBTQIA+. A homossexualidade sem o glamour das baladas e fotos de gente malhada nas redes sociais, que são parte, obviamente, da vida, mas não resumem a condição humana. São dois romances que li em um espaço de poucas semanas e que se ligam pelo infortúnio de suas personagens. Por isso, resolvi juntar ambos nesta resenha, embora sejam muito diferentes no estilo e no fio da narrativa.
Falo de Pão de Açúcar, do português Afonso Reis Cabral, lançado no Brasil pela Harper Collins, vencedor do Prêmio José Saramago. E de A palavra que resta, do brasileiro Stênio Gardel, romance de estreia do autor, publicado pela Companhia das Letras, aposta certeira em um novo talento da literatura brasileira.
Começo pelo romance português, baseado na história de Gisberta Salce, travesti brasileira, que partiu da zona norte paulistana para se aventurar em terras europeias, nos anos 90. Depois de uma carreira como dançarina em várias cidades do continente, com passagem de certo destaque pelas boates de Paris, foi parar na cidade do Porto, em Portugal, onde a depressão, as drogas, a prostituição e o HIV, somados ao preconceito, a empurraram para a situação de rua. Vivendo nos escombros das obras inacabadas de uma filial do supermercado brasileiro que dá nome ao romance, Gisberta foi encontrada, debilitada, por um bando de 14 meninos, moradores de um abrigo para jovens em ressocialização. E se tornou, por dias a fio, um saco de pancadas dos rapazes. A história de Gisberta, que ainda provoca comoção e polêmicas na cidade portuguesa, você pode ler aqui neste post de Adriana Negreiros, recém publicado pelo TAB, do UOL.

O romance de Cabral começa com uma carta (outro ponto de contato com a obra de Stênio Gardel, que explicarei mais adiante). Um dos rapazes envolvidos nas sessões de tortura que levaram Gis à morte, já livre da pena de ressocialização imposta pela Justiça portuguesa, procura o escritor e entrega a ele uma espécie de diário. Trabalhando como mecânico de automóveis, ele diz a Cabral que não tem tempo e nem criatividade para escrever a história de como conheceu e se aproximou de Gisberta. Essa é a história que nos conta o autor. E, a partir desses escritos, ele constrói a história da brasileira a partir do olhar desse garoto. Os capítulos vão alternando as vidas conturbadas dos internos do abrigo, um lar mantido por uma instituição religiosa, que reúne histórias de abandono, violência e pequenos crimes cometidos por meninos que estão entre os 8 e os 15 anos de idade. Rafa, o garoto dos diários, está entre os mais novos da turma. Tenta se desvencilhar dos mais fortes e dominantes e começa a fugir das aulas, buscando aventuras solitárias pelas ruas do Porto, até que encontra os escombros da obra inacabada e, no meio das estruturas aparentes de concreto, o barraco onde Gisberta se esconde do mundo.
Afonso Cabral conta uma história de aproximação, repulsa e tentativas de empatia que se dissolvem quando o segredo do garoto é descoberto pelos outros meninos do abrigo. Até o começo das sessões de tortura, a narrativa vai mostrando fragmentos da vida de Rafa e seus amigos, e, principalmente, a trajetória de Gisberta, que abandona o lar paterno quando se assume travesti e busca na Europa um caminho para ser o que deseja. Bela, a ponto de já debilitada provocar sentimentos confusos em Rafa, ela consegue alguns momentos de glamour em sua jornada europeia. Mas é vencida pelo preconceito, aliado à xenofobia. E seu fim, trágico, violento, não é muito diferente de grande parte das travestis e transgêneros em todo o mundo.
A narrativa de Afonso Cabral flui com a gravidade que a vida de Gisberta exige. E as cenas de violência mexem com o estômago do leitor. Fica claro que ele preenche lacunas da história com possíveis conversas entre Rafa e Gisberta, tentando entender se houve, de fato, algum traço de humanidade em uma relação que descambou para um profundo desprezo por uma vida. No fim do romance, notas explicativas sobre o caso fazem um fecho que é melancólico e revoltante, dada a indiferença com que a situação foi tratada pela polícia e pela mídia. Afinal, foi mais uma vida invisível que se apagou.

Uma carta é o começo, meio e fim de toda a história arquitetada por Stênio Gardel em A palavra que resta. Logo no primeiro capítulo conhecemos Raimundo Gaudêncio de Freitas, um senhor que tenta, já com idade avançada, dominar o mundo das palavras. Em seguida, voltamos no tempo para conhecer Raimundo em sua adolescência. Um garoto que vive na zona rural do sertão nordestino. Ajuda o pai na roça e, nas poucas horas vagas encontra Cícero, um rapaz da vizinhança, de idade parelha. A diferença entre ambos está na escola. Raimundo não recebe qualquer estímulo para estudar, vai crescendo analfabeto, enquanto o amigo, mesmo ajudando o pai na lida do campo, se desloca para a vila mais próxima onde aprende a ler e escrever.
Mais do que amigos, os garotos começam a descobrir o amor sensual em banhos de rio, carícias, cochilos no peito um do outro, debaixo de uma grande árvore, e o sexo. A história vem à tona e, a partir daí, a vida de Raimundo diante de um pai machista, autoritário e homofóbico se torna inviável. A solução é fugir, de preferência com Cícero. Mas a fuga será solitária e, de Cícero, restará apenas uma carta, entregue pela irmã de Raimundo. Mas como? Se ele não sabe ler, o que Cícero pensa que pode transmitir a um analfabeto? Por quê não veio ao seu encontro? Por quê não enfrentou o mundão junto com o amigo?
Com essas perguntas girando na cabeça, Raimundo sai de sua terra e o romance dá um salto temporal. Na verdade, os saltos são alternados, entremeando histórias do sertão com a jornada errática da Raimundo como “chapa”, ajudante de caminhoneiros pelas estradas da vida e, no presente da narrativa, quando já sessentão se estabelece como costureiro e se casa com uma travesti. Enquanto isso, a carta de Cícero permanece fechada.
Esse é o fio da história, mas não fiz spoilers, ok?
Stênio retrata um universo de extrema rudeza, onde a homossexualidade, mais do que em cidades grandes ou médias, não tem espaço e é tratada com rejeição e violência. Para o pai de Raimundo, um filho gay deixa de ser da família. O menino entende e passa uma vida inteira se escondendo. Vive no meio de caminhoneiros, estragando a saúde ao carregar pra lá e pra cá cargas pesadas, vivendo de uma viagem a outra, sem pouso fixo, dormindo embaixo dos caminhões ou ao relento. Em algumas cidades descobre os cinês pornô, onde consegue viver parte de seus desejos. Uma cena de extrema violência, muito próxima da narrativa dos espancamentos de Gisberta em Pão de Açúcar é um ponto de mudança na vida do “chapa”.
A prosa de Gardel entra na invisibilidade da vida de milhares de Raimundos. Gay, não consegue espaço para se assumir. Ao se deparar com uma travesti, desconta nela a violência que sofre, em um momento extremamente delicado e perturbador do romance. Vê naquela pessoa ainda mais miserável e invisível que ele um espelho dos preconceitos que o perseguiram a vida toda. E tem a oportunidade de se redimir. Há momentos de forte sensualidade nas descrições dos banhos de Cícero e Raimundo, há momentos de sexo bruto, e não menos sensual, e há um universo em que se misturam a busca pelo conhecimento, quando o senhor Raimundo procura uma turma de alfabetização, claro, para ler a carta (antes que vocês reclamem de spoiler, a gente sabe disso na introdução do romance) e a beleza dos arranjos entre as raras pessoas que não olham para o já quase idoso Raimundo sem as lentes do preconceito. Gardel tem uma escrita fluida e saborosa e já estou à espera de sua próxima obra.
O que ficou dessas leituras foi o olhar atento dos autores para vidas invisíveis, que raramente têm espaço na mídia e, menos ainda no mundo da ficção. São universos onde o pouco de afeto que há é massacrado pela violência cotidiana. São vidas que precisam ser contadas.