Conhecendo Annie Ernaux

Desde o anúncio do Nobel de Literatura de 2022, estava disposto a embarcar na onda Annie Ernaux, de quem já tinha ouvido falar muito, mas jamais havia lido uma linha. Acontece que a premiação fez sumir das prateleiras as edições brasileiras e até francesas da, agora, autora celebridade. Sorte da Fósforo, que está correndo para recolocar os livros em circulação e lançando novos títulos.

Acabei por baixar no Kindle uma edição de O acontecimento, uma das obras centrais da escritora. Eu o fiz por pura necessidade. Precisava de um novo livro no Kindle, para ler no caminho de metrô até o Itaquerão – ok, Corinthians, vou dar uma forcinha para pagar o estádio, a Neo Química Arena, que deveria se chamar Dr. Sócrates.

Cometi o sacrilégio de interromper a leitura de um romance de Natalia Ginzburg, tudo por causa da Polícia Militar de São Paulo, que acredita piamente na ideia de que um torcedor munido de um livro é um perigoso terrorista prestes a atirar um exemplar de O ser e o nada na cabeça de um juiz ladrão ou de Felipe Melo. Se bem que essa não seria uma má ideia………………………………………………………………………………………………………………………….. ……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………..hummm, esquece, nenhum livro, nem mesmo a biografia do próprio Felipe Melo, o açougueiro, merece ser jogada em uma cabeça completamente oca.

Do que eu estava falando mesmo? Ah, sim, de Annie Ernaux. Pois então baixei um primeiro livro no Kindle e li praticamente de uma sentada só. Ida e volta Pinheiros-Itaquera e mais alguns minutos durante o almoço e o texto autobiográfico, curto e impactante foi devorado. E deu pra entender o porquê de tantas pessoas de minha timeline literária, como Micheliny Verunsky, Christiano Aguiar e muitos outros e outras terem um profundo respeito pela obra de Ernaux. Movido pela curiosidade, logo dei o segundo passo avante na obra da francesa, devorando “O lugar” entre uma garfada e outra nos almoços dos últimos dias.

Annie Ernaux passou pela Flip, e entrou pesadamente na mídia de cultura, como a mais famosa das convidadas da festa deste ano. Aproveito a efeméride para deixar minhas modestas opiniões sobre a leitura de dois livros curtos, diretos e impactantes.

Enquanto preparava este post, acabei lendo também um terceiro livro de Ernaux, em edição recém-lançada. Trata-se de O jovem que a Fósforo colocou nas livrarias já com o selo de Prêmio Nobel 2022.

Os três livros têm muito em comum. A começar pelo tamanho. São textos curtos, entre 50 e 80 páginas, em formato de bolso. Ernaux é uma escritora econômica em seus escritos que transitam entre as dimensões do conto e da novela.

Nas três obras, relatos pessoais, de episódios marcantes do passado da professora de literatura, crítica e escritora consagrada. Em O acontecimento, obra escrita nos anos 1980, o ponto de partida é um exame de sangue que Ernaux faz no serviço público de saúde. A epidemia do HIV assolava o mundo e uma relação sexual sem preservativo leva a mulher de quarenta e poucos anos ao teste. Desfeita a tensão da espera pelo resultado, enfim negativo, ela retorna ao mês de novembro de 1963, quando muito jovem engravidou de um namorado que, obviamente, deixou para ela a decisão e a atitude de abortar em um país em que a interrupção da gravidez era crime gravíssimo. Ernaux só tornou essa história pública depois que o aborto foi descriminalizado na França. A narrativa é dura, crua, direta aos fatos e causa um misto de mal-estar e horror aos leitores. Não pelo aspecto moral do aborto, mas pelos detalhes relatados e pelo sofrimento que a ilegalidade impunha às mulheres que desejavam não ter filhos.

Já em O lugar, Annie começa a nos contar a história de seu pai. Parte do momento em que ele morre, já idoso, na casa da família, que é um misto de empório, café e residência em uma pequena cidade da Normandia. Annie está presente no momento da morte e começa a relembrar a dura vida dos pais, desde o fim da primeira guerra, passando pelo momento da ascensão do nazismo e da ocupação da França pelos alemães, quando a autora nasceu. Na cultura da escassez, a família de origem camponesa atravessou as décadas saindo da pobreza para uma situação minimamente confortável, o que permitiu a Ernaux o estudo universitário e a mudança para cidades maiores, empregos melhores e, finalmente, uma carreira acadêmica e uma trajetória como escritora conhecida nacionalmente. A narrativa dessa história não é linear, faz um vai-e-vem entre infância, adolescência, juventude e a maturidade, revelando uma relação que era carregada de um misto de afeto e vergonha das origens humildes e do jeito bronco desse pai que demonstrava por ela também sentimentos ambíguos de orgulho e rejeição pelo fato da filha ter “abandonado” suas origens. Annie nos informa que escreveu esse relato ainda no período do luto, o que me remete à leitura de Lili, belíssima novela escrita recentemente pela brasileira Noemi Jaffe, em que ela faz da escrita uma forma de homenagear a mãe que acabara de morrer.

Por fim, li em pouco menos de uma hora o breve O jovem, seu mais recente lançamento. Nele, a escritora francesa relata a relação que manteve no final dos anos 1990 com um estudante, que fora seu aluno. Aos 54 anos, escritora, professora universitária, mãe, ela se vê envolvida em uma relação intensa com um jovem de 25. Em dado momento, ela diz que esse namorado “me arrancava da minha geração, mas eu não pertencia à dele”. Uma relação intensa, sombreada pelos olhares de reprovação, pelas questões geracionais, por muitas dúvidas de uma mulher madura, que sente-se permanentemente insegura, com a sensação de que logo será abandonada em troca de uma moça mais nova. Isso não acontece e a tensão cresce, até um desfecho que dá fim a uma relação de quase dois anos, que assim como entrou repentinamente na vida de Ernaux, também acaba sem grandes vínculos, que não o da memória, que se tornará literatura em suas mãos.

As leituras desses três pequenos livros causaram viva impressão no leitor. E o desejo de ampliar o conhecimento sobre a obra de Annie Ernaux, especialmente cativante pelo uso de uma linguagem extremamente direta, com uma simplicidade na escolha de palavras para descrever fatos, paisagens e, principalmente, nos fazer olhar os acontecimentos da vida da escritora como matéria de literatura e, ao mesmo tempo, de mergulho na psique da própria escritora e das personagens, reais ou não, que marcaram momentos cruciais de sua vida. O estilo e a temática recorrente na obra da francesa são fonte de inspiração para escritores de todos os cantos do planeja e motes para incessantes debates sobre a existência, ou não, de um gênero chamado auto ficção. Nesse ponto, fico à parte, observando as tretas e aproveitando para ler mais e mais.

P.S.: enquanto construía este texto, comecei a ler mais Ernaux. Já avancei pela metade na leitura de Regarde les lumières mon amour, um curioso diário de visitas a supermercados no interior da França.

 P.S. 2: a foto que ilustra o post foi tirada na instalação de Yaoy Kusama, no Instituto Inhotim.

4 comentários sobre “Conhecendo Annie Ernaux

  1. Li também O lugar e O acontecimento. Fiquei impactada com a leitura simples mas profunda. Comecei a ler Os anos e estou achando muito diferente, mas estou no começo, nem sei ainda se eu estou gostando. Comprei A vergonha e O Jovem é estou esperando chegar 📚

    Curtido por 1 pessoa

    1. Que legal. A prosa dela vicia, né? Estou acabando a leitura de “Regardes les lumières mon amour” e afirmo que é uma das mais impactantes visões sobre a sociedade de consumo que já li, em linguagem literária, sem arroubos de ensaio acadêmico. Estou adorando. Também tenho curiosidade com “Os anos”, que vou atacar em breve.

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