As mulheres foram proibidas de jogar futebol no Brasil durante quase 40 anos, entre 1941 e 1979 – mas não me surpreenderá se você não souber dessa informação. Eu também não sabia, até alguns anos atrás, e conheço gente muito bem informada que arregala os olhos em surpresa quando eu falo nesse assunto.
Esse dado explica muita coisa sobre o Brasil, sobre como operam as estruturas de poder político, econômico e social e, por acaso, também sobre o futebol. E é sobre isso que vamos falar no post de hoje, que marca meu retorno ao Lombada Quadrada depois de meses de dedicação a uma dissertação de mestrado.
A proibição causou impactos profundos na forma como as mulheres e os homens brasileiros se relacionam com o futebol e provocou uma apagão de informações a respeito de como se deu a prática da modalidade no passado. A gente tem todos os detalhes sobre jogos do masculino que ocorreram há mais de 100 anos, mas não sabe ao certo os nomes de jogadoras brasileiras que ganharam campeonatos nos anos 2000. Quanto mais pra trás, pior o cenário.
Mas há dezenas, talvez centenas de pesquisadoras brasileiras, garimpando dados, imagens, objetos e referências, dedicadas a montar esse quebra-cabeças para entender como as mulheres driblaram a proibição para continuar jogando. Porque, né mores, não era um decretinho de um getulinho qualquer que ia impedir totalmente a mulherada de jogar bola. Nesse jogo, não tem cai-cai, e as partidas continuaram acontecendo sob muita precariedade, mas na base de muita coragem e subversão.
Uma das pesquisadoras mais importantes do campo é a jornalista Lu Castro, que acaba de fazer uma descoberta extraordinária: no final de 1979, dançarinas das boates da Boca do Luxo, em São Paulo, jogaram um campeonato a sério, começando nos campos que ficavam onde hoje é o Parque do Povo, hoje lugar nobre da cidade. Uma sequência de notinhas e pequenas matérias no jornal Diário da Noite trazia a escalação, fotos dos times e até a programação das partidas.
Como já vi Lu ressaltando, o repórter (ou a repórter – os textos não são assinados) escreveu de maneira muito respeitosa sobre os jogos – mas, infelizmente, não chegou a publicar nada a respeito das finais. Diante da incógnita, Lu resolveu compartilhar a descoberta através de uma história em quadrinhos que ficcionaliza o campeonato, criando personagens que dançavam por dinheiro e jogavam futebol por amor.
A HQ é roteirizada por Lu e por Lalo Sousa, responsável também pelos desenhos, que lembram bastante a estética dos mangás, especialmente nas cenas de jogo. Na história criada pela dupla, as dançarinas da boate My Love têm como arquirivais o time da Le Masque. A esquentadinha Isabel é a capitã da My Love, entendiada no palco da boate e uma fera no campo, provocadora de confusões no jogo capazes de chamar a atenção da polícia.

Uma nova garota chega na boate e se revela um importante reforço para o time da My Love. A melancólica Dolores que circula pelos corredores da casa noturna vira outra pessoa com uma bola nos pés – às vezes, literalmente: como se fosse uma médium recebendo uma entidade, o espírito da melhor jogadora do mundo vem diretamente do futuro (hoje?) e baixa em seu corpo, ajudando o time em momentos cruciais.

Outra “entidade” entre as personagens é Mamita, uma mulher negra, mais velha, que acolhe e aconselha as dançarinas, atuando como uma espécie de mentora das mais jovens. Mamita narra os jogos entre as mulheres com o megafone e tem o poder de aparecer e desaparecer quando quer – mais uma brincadeira que o formato ficcional permite a essa história incrível.
Tricolor roxa, Lu Castro joga um easter egg sobre o prêmio do campeonato. My Love e Le Masque disputam a Taça das Bolinhas – sim, a mítica taça que segue trancada em um cofre da Caixa Econômica por causa da polêmica sobre que time teria sido o primeiro a conquistar cinco campeonatos brasileiros depois de 1971, Flamengo ou São Paulo.
(O que deveria ser uma informação objetiva é um pesadelo no futebol brasileiro organizado pela CBF e até difícil de explicar em um parênteses, mas vamos tentar: o Flamengo poderia ter sido o primeiro clube com cinco brasileiros, mas o campeonato de 1987 que os cariocas consideram deles na verdade é – sempre foi e sempre será – do Sport Clube do Recife. Mas como o clube do Rio tem as costas mais quentes que miliciano, quem paga o pato é o São Paulo, clube que de fato foi o primeiro a conquistar cinco brasileiros. Sobre a confusão do campeonato de 1987, leia a resenha que escrevi sobre outro livro).
Há uns dias ouvi de outra pesquisadora no auditório do Museu do Futebol que as mulheres que jogam bola dizem se sentir livres e fortes. E a Boca do Luxo entra em campo é sobre isso. A história fictícia baseada em indícios de realidade mostra o futebol como momentos de liberdade, força e domínio do próprio corpo para mulheres cuja profissão era justamente objetificá-los em troca de dinheiro – nem sempre, e provavelmente quase nunca, por opção.
Lu está atrás de mais informações sobre esse campeonato, suas jogadoras e organizadores. Conhece alguém que pode contribuir com essa história? Escreva no Instagram para @lucastro_esportepesquisa.
O livro está à venda com a prória Lu (só mandar DM pra ela no Instagram) e no site de Lalo. Para quem estiver em São Paulo, há alguns exemplares disponíveis com Ademir, na Biblioteca do Museu do Futebol, no estádio do Pacaembu.
