Os romances epistolares de Natalia Ginzburg

Na minha tresloucada obsessão pela obra de Natalia Ginzburg – uma descoberta tardia, que narrei aqui,  de uma autora que entrou rapidamente para o rol das minhas preferências -, passei a comprar todos os relançamentos em português de sua obra. E seria capaz de estudar italiano apenas para ler no original romances, crônicas e ensaios que me arrebatam. Quem está me ajudando nessa jornada é a Companhia das Letras, que herdou alguns títulos editados há alguns anos pela saudosa Cosac Naify, e relançou outros, em ótimas e renovadas traduções.

As mais recentes imersões na obra da italianas vão render um post só, porque são dois livros que se aproximam pela opção da autora por contar histórias na forma epistolar. Falo de Caro Michele e A cidade e a casa. São duas obras da maturidade de Natalia. A primeira, de 1973 e a segunda de 1984.

Depois da leitura de Léxico familiar, esperei alguns anos para enfim mergulhar em Caro Michele, o romance de maior sucesso da carreira de Ginzburg. Nos sebos, a edição da Cosac custava uma pequena fortuna. Tudo se resolveu com a nova edição da Cia. das Letras, com tradução e posfácio de Vilma Arêas.

Na conturbada Itália do começo dos anos 1970, uma intensa correspondência é enviada a Michele, um jovem irrequieto, que pula de casa em casa, de cidade em cidade, recebendo cartas de amigos, amigas e, principalmente, de sua mãe. Depois de dois capítulos em prosa, começam as cartas destinadas ao “Caro Michele” que vão compondo um cenário familiar que é entremeado pela complexa e violenta situação da política italiana daqueles tempos. Entre longas cartas enviadas a ele, temos as raras e lacônicas respostas de Michele. E vamos sabendo da trama familiar, suas questões financeiras, polêmicas heranças, as manias da mãe, que resolveu morar em uma área rural, isolada e de uma tia que escreve eternamente um romance sobre o qual a família tem uma opinião unânime: é ruim e constrangedor.

Como toda correspondência, os textos são diretos, muitas vezes narrando coisas prosaicas, em outras, dividindo angústias. Enquanto isso, a figura de Michele vai se formando na cabeça do leitor por meio das referências a ele na troca de cartas. Seus movimentos incertos na política, armas, prisões, ações de guerrilha em um ambiente de forte repressão, as relações com amigos e amigas em uma moradia coletiva e referências veladas à sexualidade do rapaz compõem fios de uma trama que dá a nós, os leitores, a tarefa de ligar os pontos. Essa é uma estratégia narrativa extremamente refinada e complexa, que me remete ao livro O último leitor, com ensaios Ricardo Piglia sobre literatura, que li recentemente. Nele, o argentino analisa obras icônicas da literatura nas quais, a seu ver, o autor, ou autora, de alguma forma enxerga no leitor uma espécie de coautor de sua obra.

As pontas soltas e os muitos fios desencapados nas cartas de Caro Michele cumprem o papel de nos fazer também autores de uma obra que é concisa, extremamente elegante, embora baseada em uma linguagem cotidiana e muito coloquial, que também é uma das características da literatura de ficção da autora italiana.

Se em Michele as cartas são entremeadas por pequenos trechos em prosa, a confecção de seu outro romance epistolar, A cidade e a casa é construída totalmente na troca de cartas entre Giuseppe, um jornalista em fim de carreira, envolto em crises financeiras e pessoais, que toma a repentina decisão de ir morar com o irmão, um renomado cientista, em Princeton, a pequena cidade norte-americana que abriga a universidade do mesmo nome.

Neste romance, com ótima tradução e posfácio de Iara Machado Pinheiro e uma saborosa entrevista com Natalia feita à época de sua publicação, a ambientação se dá na virada dos anos 1970 para a década de 80. A política italiana ainda está às voltas com violência, instabilidade, com trocas quase semanais de primeiros-ministros, inflação, incertezas, terrorismo e a máfia.

As cartas de Giuseppe são endereçadas a parentes, amigos, um filho com quem tem uma relação distante, um casal muito próximo de cuja mulher ele foi amante por anos, em uma relação que tinha o consentimento velado do marido. Em torno desse universo, aparecem também uma milionária colecionadora de arte, seu namorado, um ambicioso marchand, a mulher do irmão, de nacionalidade americana, também ela cientista, compondo uma polifonia de vozes, angústias e desejos reprimidos.

As correspondências se sucedem, muitas em datas próximas e outras em saltos temporais que provocam alguns plot twists que muitos roteiristas de cinema não conseguiriam dar com tanta maestria, com mudanças abruptas na vida das personagens, em especial nas trajetórias de Giuseppe, de seu filho e de seu irmão. Em uma dessas situações eu lia durante o almoço, em um boteco de Pinheiros e soltei um pequeno grito de espanto, que deixou o cara da mesa ao lado certo de que estava próximo de um maluco. Mas não vim aqui para fazer spoilers.

O jornalista Giuseppe dá lugar, nos EUA, ao professor de ensino médio, bico que arruma para pagar as contas. Entre garrafas de vinho, cerveja e conhaque, morando na casa do irmão e da cunhada, tenta escrever um romance, um projeto de vida ao qual se dedica eternamente. Nada sabemos sobre qual a trama desse romance, mas aqui temos outro ponto de contato com Caro Michele e a escrita sem fim e fracassada de um romance que ninguém lerá.

Nas duas obras, os pequenos detalhes do cotidiano e as micro histórias de pessoas comuns são a base para contar, nas entrelinhas, um enredo que é universal e humanista. Esse, para mim, é o encanto da obra de Natalia Ginzburg, que até mesmo no grandioso A família Manzoni, que resenhei aqui, faz uma bela obra histórica sobre uma das personalidades marcantes da Itália a partir de cartas e registros cotidianos deixados pelo grande escritor do século XIX e sua família.

O encantamento com Natalia Ginzburg não tem limite.

Foto de Liam Truong na Unsplash

4 comentários sobre “Os romances epistolares de Natalia Ginzburg

  1. Carlos, também ando presa no universo ginzburguiano. Provavelmente você já deve ter lido, mas não resisti à tentação de lhe sugerir “Não me pergunte jamais” e “Todos os nossos ontens”, este último um espetáculo!
    Aliás, valeu muito ler “Os anos” (Annie Ernaux) e, na sequência, “Todos os nossos ontens”. Literatura e sociologia de mãos dadas…rsrs
    A propósito, obrigada pela postagem!
    Ana

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    1. Ana, obrigado pelo comentário e pelas dicas. “Não me pergunte jamais” eu li praticamente de uma sentada. Maravilhoso. E curiosamente também li “Os anos” na mesma semana. Já “Todos os nossos ontens” eu não tenho e, claro, vou correr atrás já!

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