Família Manzoni é o livro do rés-do-chão. Não porque seja rasteiro, muito pelo contrário. Trata-se de literatura de primeiríssima qualidade, refinada ao extremo. E muito simples, como só uma escritora genial como Natalia Ginzburg pode nos oferecer. São mais de 400 páginas em que se “esconde uma poesia secreta”, como diz Cadão Volpato na contracapa da edição da Companhia das Letras para esse livro que você vai desejar ler de um fôlego só, embora isso seja impossível.
E já que a leitura tem de se estender por dias a fio, sugiro que o leitor o faça com o máximo de atenção possível. Primeiro, para fruir dessa poesia secreta que se esconde por todos os lados. E também para não perder o fio da meada.
A escritora italiana tem uma queda pelas grandes histórias. Mas faz questão de contá-las por um olhar especialmente destinado a desmontar as peripécias de seus personagens. Isso acontece com sua própria família, que é o tema de Léxico familiar, que já foi resenhado aqui e está entre os livros mais impressionantes que já li. Nessa quase autobiografia, assistimos ao cotidiano da família Levi pelos olhos da menina Natalia. Grandes acontecimentos do século XX passam pela casa da menina, que olha o fascismo, a resistência, a política, os costumes, a literatura sob a ótica da invisibilidade. Ela mal aparece como parte daquele universo. Mas capta, através de um olhar atento para a linguagem do cotidiano, questões de fundo como a relação de gêneros, a hipocrisia da política, a violência do Estado fascista, a aposta na cultura como fator de resistência e sobrevivência.
Em Família Manzoni Ginzburg traveste a história de uma grande família italiana do século XIX em romance histórico. Mas o livro é bem mais que a biografia dos Manzoni. É um mergulho no cotidiano, nas mazelas, nos pequenos e grandes acontecimentos de um clã que atravessou uma centena de anos influenciando o surgimento do pensamento moderno italiano.
Alessandro Manzoni, o patriarca dessa família, está para a Itália como Victor Hugo para a França, Machado para o Brasil e por aí vai. Com um livro chamado Os noivos ele inaugurou o romance moderno italiano. Ao usar o dialeto toscano, revolucionou a linguagem e liberou os autores que lhe sucederam dos formalismos da norma culta, que na Itália simplesmente não é falada nas casas, nos bares e nas ruas.
Natalia partiu do interesse de seu marido, Leone Ginzburg (morto na cadeia, durante a guerra) pela figura de Manzoni. E aprofundou a pesquisa, em um trabalho meticuloso, conseguindo levantar milhares de cartas trocadas pelo círculo íntimo dos Manzoni ao longo de mais de 8 décadas.
Como uma dedicada tecelã, Ginzburg pegou os retalhos de uma vida contados exclusivamente por essas cartas e foi montando uma longa colcha, em capítulos que se sucedem com os nomes e a ótica de alguns dos membros da família.
E aí não é o grande Manzoni, aquele que tem estátua no centro de Milão, que foi reconhecido em vida como grande escritor, eleito senador vitalício, aplaudido por onde fosse. Aparecem as mazelas de uma família que não foi só alvo da fortuna. Doenças, dívidas, mortes, muitas mortes prematuras e estúpidas, desilusões. São muitos os contratempos que Alessandro vai viver ao longo de 88 anos, testemunhando o ocaso de tudo que construiu e terminando seus dias cativo dos cuidados dos filhos.
Para acompanhar essa trama, Natalia nos oferece uma árvore genealógica da família. E como ela é necessária!
Ela recua no tempo, para nos mostrar que o menino Alessandro é neto de Cesare Beccaria, outra figura célebre, mas no campo do direito. A vida já começa torta, cheia de confusões. O casamento dos pais é uma farsa, em meio aos amantes da mãe a indiferença do pai e uma espécie de fuga a Paris. Ali, Manzoni, ainda muito jovem, descobre o que é desterro e solidão. Mas dá a volta por cima ao selar com a mãe uma aliança de lealdade e amor, além de viver uma epifania religiosa, que serão as bases do futuro escritor e pensador.
Paro por aqui nos detalhes, porque a história da família se compõe na leitura. Chamo atenção para o modo como a autora organizou as cartas, fazendo o mínimo possível de intervenções. Ela vai juntando as narrativas e faz pontualmente comentários, preenche lacunas com a imaginação, cita outras fontes de pesquisa, secundárias para o livro, que confirmam determinados acontecimentos. Das cartas e desses comentários tão sutis e certeiros o leitor pode depreender muitas histórias e temas. Para mim, saltaram aos olhos a condição da mulher em uma família burguesa do século XIX. E olhe que entre os Manzoni, muitas mulheres tiveram uma força e relevância, especialmente a mãe, Giulia, corajosa para enfrentar adversidades e a moral vigente. Mas a tônica era a da fragilidade da saúde feminina. Meninas mortas na adolescência por doenças hoje banais. Reclusas em casas e conventos até que um casamento de conveniência fosse acertado. E, depois das núpcias, o estado permanente de gravidez, como o de Enrichetta, a primeira mulher de Manzoni, “vítima” de 9 partos ao longo de um vida breve.
A poesia de Natalia Ginzburg se revela nos pequenos textos, quase sempre lacônicos, diretos, um tanto tristes. É aí que ela imprime seu olhar. E encanta o leitor.
A Família Manzoni também é fruto da força da autora. Mesmo ocupando cargo de editora na Enaudi, a principal casa italiana, lutou muito pela publicação do livro, como nos revela no prefácio. E usou todo seu prestígio para exigir que nenhuma proposta de edição, redução do texto ou mudança da estrutura fosse realizada. Reclama do pagamento feito a obras dessa envergadura. Faz suas exigências. E vence. Para nossa sorte.
P.S.: no destaque, monumento a Alessandro Manzoni, na Piazza San Fedele, em Milão.
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