Faz poucas semanas que assistimos em cadeia nacional as imagens de uma mulher sendo morta pelo marido, apanhando e sendo arrastada por um longo caminho desde a garagem do seu prédio até o andar onde morava com ele, em um edifício no interior do Paraná. Minutos depois daquelas cenas capturadas por câmeras de segurança, a moça seria jogada do quarto andar, e acabaria morta na calçada. Como assinalou uma amiga, é preciso ver essas imagens, por mais duras que sejam. É preciso sentir como aquela mulher esteve sozinha enquanto apanhava até morrer, embora cercada de vizinhos, gritando por socorro e assistida por câmeras que findaram servindo apenas a um fetiche midiático póstumo.
É um tipo de solidão muito parecido com este que norteia o momento mais dramático de O peso do pássaro morto, romance de estreia da paulistana Aline Bei, lançado este ano pela editora Nós. Um estupro sofrido aos 17 anos define toda a vida posterior da personagem, uma mulher que registra em primeira pessoa seus pensamentos e sensações, da infância até as portas da velhice. Curto e ligeiro, o livro está escrito no que se convenciona chamar de prosa poética, mas que considero outra coisa: dividindo suas frases ao meio, pulando linhas e construindo cada página visualmente, Aline Bei condiciona o olho e a respiração, e a leitura ganha também uma dimensão biológica.
Absolutamente solitário o momento do estupro, que acontece dentro do prédio onde a personagem morava, também praticado por alguém em quem confiava e cercada de conhecidos como na vida real; e absolutamente solitária toda a vida posterior da moça, que engravida e não consegue sequer dizer em voz alta o que lhe tinha acontecido (“mas não tive Coragem/ para dizer / Estupro. / Então eu disse: / fiz sexo“). Grávida de uma violência, esta mulher continuará silenciada e refém até o fim da vida, sempre tentando ficar de pé sobre os escombros de si mesma.
Aline Bei nos oferece uma visão íntima dessa solidão que se externa de variadas maneiras e se transforma ao longo da vida. É claro o retrato de uma personagem única, mas que ao mesmo tempo é todas as mulheres do mundo. Essa solidão, que se aprofunda com o estupro, na verdade está presente desde sempre, quando então uma menina de oito anos aprende com a mãe que morrer e viver podem ser coisas muito parecidas quando não se dispõe de escolha.
– o bife
é morrer, porque morrer é não poder mais escolher o que farão com a sua carne.
quando estamos vivos, muitas vezes também não escolhemos. mas tentamos.
Como aponta Micheliny Verunschk na orelha do livro, O peso do pássaro morto é “um sujeito híbrido entre livro e sudário” – ou seja, entre livro e um testemunho material do sofrimento, tal como o pano que, na mitologia católica, cobriu o rosto do Jesus morto e ficou marcado com suas feições.
O peso do pássaro morto é pra se ler de uma tacada só, com a respiração entrecortada, entregue aos caprichos da prosa concreta de Aline Bei. Ao final, resta um longo suspiro, de alívio e dor ao mesmo tempo, e a certeza de que passamos por um grande livro.
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Um dos livros do ano!
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