No primeiro capítulo de Kentukis, romance da argentina Samanta Schweblin três adolescentes de uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos tiram seus soutiens e mostram os peitos para um inocente ursinho panda. Robin, a dona do bichinho de pelúcia, é impelida pelas amigas a fazer a cena de exibicionismo, que parece não ter maiores consequências do que uma brincadeira de jovens entediadas. Mas o bicho, na verdade, é um Kentuki, uma espécie de robô com câmeras à guisa de olhos, que é controlado via internet por uma pessoa anônima que comprou o direito de espionar a proprietária do bichinho, que por sua vez, também comprou o direito de ser espionada. A desventura da jovem Robin com seu ursinho espião termina logo e de maneira assustadora. E assim começa o desfile de pequenas histórias de pessoas que, em várias partes do mundo, se deixam seduzir pela fofura dos Kentukis, que podem ser pandas, coelhinhos, dragões, macaquinhos ou toupeiras, movidos a distância por curiosos anônimos das mais variadas idades, origens e intenções.
Samanta Schweblin constrói uma distopia terrivelmente realista, que poderia estar acontecendo aqui, agora, em todo o planeta, que normalizou aberrações como os reality shows que expõem a vida e a intimidade de pessoas – comuns ou celebridades – à sanha voyeurística de quem se dispõe a gastar horas e horas de sofá para ver o nada. É uma história que daria um excelente episódio de Black mirror.
O desfecho do caso de Robin, a primeira “ama” de um Kentuki que conhecemos no livro é rápido e tenebroso. A partir daí, Samanta começa a nos apresentar histórias de uma dezena de pessoas que compraram o direito de ser vistos, ao adquirir os bonecos, ou de espiar, ao comprar uma senha de acesso a um boneco qualquer espalhado pelo mundo. Quem compra o Kentuki não sabe de onde virá seu espião, quem é, qual a idade, onde mora. Quem compra o link, pode ver o que acontece na casa e nos ambientes onde seu boneco transita. Não há como se comunicar, pelo menos não inicialmente, é uma relação muda, de vigília. Assim, vamos transitando de lugares como Antígua, México, Noruega, Venezuela, Brasil, Argentina, Alemanha, Peru, Hong Kong, Nova Zelândia.
As histórias das relações entre amos dos bonecos e seus controladores vão se alternando em capítulos curtos. Mestre do horror, Samanta Schweblin vai acrescentando camadas aflitivas a relações que começam suaves, como a interação entre uma senhora peruana com uma moça alemã, que transita entre a empatia, a perplexidade e uma dose final de desejos e fantasias sexuais extremas que rompem os limites do anonimato do brinquedinho.
Regras são estabelecidas, como a argentina que mora em uma comunidade de artistas no México e inicialmente não permite que seu Kentuki, um corvo, entre nos espaços íntimos da casa. E regras começam a ser descumpridas quando telefones e e-mails são expostos às câmeras por pessoas que não conseguem conter a curiosidade de saber quem está do outro lado, como acontece na estranha relação de pai e filho com uma toupeira comprada para tornar o menino mais sociável e menos solitário.
Em uma cidade nórdica, um movimento de guerrilha se articula para “libertar” os Kentukis de seus amos, criando uma teia de proteção que inclui um roteiro de carregadores de bateria pelas ruas da pequena cidade gelada. Aqui, cabe uma explicação. Os Kentukis perdem sua conexão se a bateria acabar e, aí, termina também a relação do espião com o amo do bichinho.
Em meio às histórias particulares, sabemos pelo noticiário que a febre dos Kentukis se espalhou pelo mundo. Casos edificantes, como salvar uma menina de um rapto na fronteira da Venezuela com o Brasil são obscurecidos pelos golpes, crimes e histórias de perseguições que vão se avolumando.
Schweblin finaliza o romance em uma espiral crescente de horror distópico, fazendo do leitor um ávido devorador dos capítulos derradeiros, deixando no ar destinos de vários daqueles que foram felizes proprietários de Kentukis ou controladores – e espiões – de vidas alheias. A temática da espionagem eletrônica não é uma novidade na ficção. Mas sempre rende boas histórias e reflexões a respeito de uma das maiores obsessões humanas: poder vigiar a vida alheia no anonimato.

Li Kentukis em edição para Kindle, da Fósforo. Antes, havia lido outro romance de Samanta, igualmente impactante e perturbador, chamado Distância de resgate. De uma nova geração de escritoras argentinas, Schweblin se junta a Mariana Enriquez como uma das expoentes da literatura de horror e fantasia dos nossos vizinhos. Vale ler essa galera.
Já vou comprar!!! Sou fã de distopias (nem tão fictícias assim) e esse diário de leitura despertou a minha curiosidade.
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Que legal. Obrigado pela visita. Quando terminar a leitura, volte aqui pra comentar com a gente!
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