Livros da Fuvest: Quincas Borba

Uma coisa básica que todo vestibulando já deve ter na ponta da língua a essa altura é que Machado de Assis foi o maior nome do Realismo brasileiro – ou seja da escola artística que buscava retratar ou comentar a sociedade e o cotidiano da época. Machado faz isso de forma magistral em toda a sua obra, sempre com um toque de humor e ironia que transformam o leitor em cúmplice de uma fofoca – e acredito que em Quincas Borba essa sensação chega ao ápice.

Eu li esse livro muitos anos atrás, provavelmente antes de entrar na faculdade e relê-lo agora, com mais bagagem, foi uma delícia. Portanto, senhor e senhora vestibulandos, se o tempo está curto e você precisa começar a escolher quais livros vai ler até a prova, eu diria que este aqui você vai ler com prazer, rapidinho e, se calhar, até dar umas boas gargalhadas. Além disso, Machado de Assis é uma barbada: dá pra ter certeza de que vai cair algo sobre sua obra na prova.

O romance publicado em 1891 pega de relance um personagem que já tinha aparecido em Memórias Póstumas de Brás Cubas – um filósofo meio doido, porém rico, amigo de Brás Cubas. Mas se engana quem pensa que Quincas Borba é o personagem principal de Quincas Borba – ele morre logo nos primeiros capítulos, deixando sua herança inteira para Rubião, um amigo professor que cuidou de si nos últimos momentos da vida. Com uma condição: para receber o dinheiro, Rubião teria que cuidar do seu cachorro querido, que se chama… Quincas Borba (sim, a tiração de onda começa cedo nesse livro).

Quincas Borba, o homem, se dizia autor de uma doutrina chamada “Humanitismo”, princípio indivisível e indestrutível que resumiria homem e universo. Para Quincas Borba, a morte não era o fim, mas condição de continuidade. Por isso, até as guerras seriam benéficas, pois possibilitariam a continuidade dos mais fortes. É no contexto da explicação dessa filosofia que surge no livro a famosa frase “ao vencedor, as batatas”, tão citada até por quem nem sabe que ela veio de um livro.

Mas, enfim, Quincas Borba morre no começo do livro, deixando fortuna e cachorro para Rubião, este sim mais próximo de um personagem principal. Um professor simplório que se vê rico de repente em Barbacena, no interior de Minas Gerais. Como o filósofo tinha casa no Rio de Janeiro, então capital federal, Rubião acaba tendo que ir para lá. E na viagem de trem, conhece o casal Sofia e Palha. Rubião de imediato se interessa por Sofia, para impressioná-la, deixa escapar que acabara de ficar rico. Começa ali uma relação de amizade interessada entre os três, com número de personagens e tramas crescendo à medida em que Rubião vai se estabelecendo na sociedade do Rio de Janeiro.

Na superfície da narrativa, Quincas Borba é a história das relações sociais, o que inclui flertes, namoros, interesses proibidos e desconfianças de traição. Mas o pano de fundo em que isso ocorre é o de uma cidade que é centro político do país na virada do século, uma época de mudanças fundamentais. A República havia sido instaurada em 1889, a corte vai ficando para trás e emerge uma elite intelectual e financeira não obrigatoriamente ligada a esse passado monárquico. Muito das relações sociais entre os homens são baseadas em interesses de negócios, sociedades, empréstimos e financiamentos – quando a coisa aperta para Palha, ele não hesita em estimular a mulher a receber com simpatia as investidas de Rubião, que já se transforara na principal fonte de recursos do casal.

E Rubião, coitado, vai de professor a capitalista em um golpe de sorte, sem nenhum conhecimento ou ferramenta que o ajude a trafegar entre os dois mundos. Assim, ele encontra seu lugar na sociedade sendo generoso (=trouxa) com o seu dinheiro. Por exemplo, recebendo um grupo de amigos intelectuais pobres para jantar todos os dias e pegar seus charutos à vontade, investindo nos negócios do Palha, tornando-se sócio do jornal de um amigo. Lá pelas tantas, Rubião enlouquece, passa agir como se fosse Napoleão ao mesmo tempo em que seus recursos se esvaem, e mal lhe sobra para arcar com os custos do sanatório onde passa um tempo internado. Só louco e pobre ele acaba conseguindo voltar a Barbacena com o cachorro Quincas Borba.

O narrador onisciente de Machado de Assis fala diretamente com o leitor, o que aumenta a sensação de cumplicidade na fofoca de que falei no começo deste texto. Além disso, é um narrador erudito, que faz relações entre o que conta e peças de Shakespeare, filosofia ocidental e mitologia grega. E um desses trechos nos dá uma síntese importante do que o autor propôs com Quincas Borba: é quando fala de como os espectadores de um teatro se regalam com as paixões de Otelo e saem da peça com as mãos limpas da morte de Desdêmona (Otelo é minha peça preferida de Shakespeare, sobre a qual já escrevi aqui).

O livro é como uma jornada do herói ao contrário: em vez de uma saga de dificuldades que termina em triunfo, o simplório Rubião tem um breve auge (se é que se pode dizer isso) alcançado pelo dinheiro e volta de onde partiu até um tanto pior quando este acaba. Nada é construído em seu caráter, nenhuma marca é deixada por ele. Machado chega mesmo a chamar Rubião de “herói” ironicamente (30 anos antes, diga-se, de Thomas Mann usar esse mote em A montanha mágica).

Antes de fecharmos a resenha, queria chamar a atenção para o personagem Carlos Maria – um jovem amigo do mesmo círculo de Rubião, Sofia e Palha. Os comentários de Machado sobre esse exemplar de homem absolutamente autocentrado são um primor da capacidade de o autor observar o comportamento das pessoas. Sem nenhum interesse real em Sofia, ele a corteja durante uma festa só porque sim, deixando-a perturbada metade do romance. Depois, acaba casando com uma prima dela, que veio do interior, a quem falava “da felicidade conjugal como de uma taxa que ia receber do destino – pagamento devido, integral e certo”. Uma pecinha boa, que “não se admirava de nada. Se um dia acordasse imperador, só se admiraria da demora do ministério em vir cumprimentá-lo”. Um homem do passado, como todas as minhas amigas mulheres haverão de atestar (contém ironia).

Quincas Borba é um livro de capítulos curtos, às vezes um parágrafo só, e de leitura bem ligeira. Eu li a edição da Panda Books, que foi recomendada na escola da minha enteada vestibulanda por agregar várias notas laterais explicando termos e referências, o que é bem útil para os estudantes. O ponto negativo é que, assim, a diagramação diminui a mancha do texto e o livro chega a 435 páginas em um formato grande, um pouco desconfortável de pegar na mão – mas nada grave, também, pois o papel poroso deixa ele leve apesar do volume.

Enfim, gostei demais de ter reencontrado Quincas Borba depois de tanto tempo, amei gargalhar com as tiradas irônicas e ser cúmplice de Machado de Assis na fofoca e na observação ferina do cotidiano.

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