Círculo do Livro

círculo do livro

 

As palmas ressoavam no longo quintal de minha infância. Eu interrompia o jogo de futebol de botão e ficava à espreita. Do fundo do terreno, ouvia o ranger da porta de rede que protegia a cozinha dos mosquitos. E os chinelos de minha mãe se arrastavam pelo quintal até o portão. Um murmúrio longínquo indicava um diálogo amistoso. E logo eu percebia que a visita era conduzida à sala, atravessando metade do quintal, entrando pela casa e chegando ao sofá.

Na minha mesa de botão, um clássico qualquer do meu imaginário campeonato brasileiro estava a minha espera, para mais um jogo solitário. Mas naquele momento, minha atenção estava toda no que poderia estar acontecendo na sala. Chegou? Chegou! Chegou? Pensava eu, quase gritando, segurando o silêncio e a ansiedade.

Lentamente, eu me arrastava pelo quintal, rente à parede da casa. Tentava, sem sucesso, entrar na cozinha sem fazer ranger a porta de rede. Bolinha, a pequinês, latia, fungava, pedia brincadeira. Mas eu só queria saber do que se passava na sala. Seria ela? Ou será que não passava de uma banal vendedora de Avon? Uma odiosa vendedora de Tuperware? Ah, como eu odiava essas moças que traziam coisas tão sem utilidade!

Andava pelo corredor, até que minha mãe se dava conta de minha presença nada sorrateira.

– Caíte, chegou teu livro!

Eu irrompia na sala feito um tufão. Corria até o sofá e, sem falar nada, sacava das mãos da vendedora um pacote de papelão. Dali para o quarto, em um segundo, mudo, ansioso. Era o esperado e amado livro.

De onde vinham esses livros? Nunca soube bem ao certo. Apenas tinha a certeza de que ao apontar para o livro na revista-catálogo e convencer minha mãe de que o orçamento do mês comportava a compra eu teria o livro em mãos, em um mês contado ansiosamente na folhinha atrás da porta.

Era assim que funcionava o Círculo do Livro, com suas vendedoras de porta em porta, nos já longínquos anos 1970.

Em meu imaginário, o catálogo do Círculo só tinha um rival: os livros da Ediouro, em versões de bolso, que vinham da avenida Brasil, no Rio de Janeiro, pelo correio. Avenida Brasil, Rio, que era um lugar idílico em meu imaginário pré-adolescente.

No Tatuapé de minha infância não havia livrarias. Apenas o Bazar Kyoto, que vendia material escolar e oferecia uma parca coleção dos livros de leitura das escolas das redondezas.

Assim, para comprar Gabriela, Cravo e Canela, Tubarão, Memórias do Cárcere e algumas dezenas de outros livros, foi semper preciso esperar esse precursor pré-histórico da Amazon.

Ao Círculo do Livro e à incapacidade que dona Alice tinha (e tem) de dizer não a vendedores, devo parte de minha formação de leitor, sem esquecer Kafka, Voltaire e alguns outros autores herdados do ano de Ciências Sociais cursado por minha irmã, anos antes, na PUC.

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