Tendo nascido no finalzinho dos anos 1970, o nome Panair do Brasil não me remetia a grandes coisas. Minha única referência – e ela só veio recentemente – vinha da musica de Milton Nascimento, que tocava repetidamente no carro e em casa. Carlos é um grande fã de Milton, o que me levou à música e à curiosidade sobre essa tal Panair. Disso pro livro Pouso Forçado, de Daniel Leb Sasaki, foi um pulo. E do desconhecimento nasceu uma leitura surpreendente. A minha é a primeira edição garimpada na Estante Virtual, mas a segunda acaba de chegar às livrarias.
Editado pela Record, Pouso Forçado trata da luta pela sobrevivência daquela que foi a maior companhia aérea brasileira até os anos 1960. A Panair do Brasil teve fim não por problemas financeiros, mas em virtude da perseguição sistemática da Ditadura, que cassou as suas linhas arbitrariamente e não sossegou até sacramentar a falência da empresa. Até então, ela ia muito bem, obrigado.
Apesar da origem americana, já tinha capital 100% nacionalizado e mantinha padrões de qualidade considerados inigualáveis. Era responsável pela implantação e manutenção dos sistemas de comunicação que garantiam a segurança de toda a navegação aérea no Brasil. E, ao mesmo tempo em que mantinha lojas em todo o mundo – “verdadeiras embaixadas não-oficiais do Brasil”, segundo o livro -, operava linhas deficitárias na região Norte, essenciais para o transporte de pessoas e mercadorias entre cidades encravadas na floresta amazônica.
O livro defende fortemente a tese de que a Panair foi extinta em benefício da concorrente Varig, que almejava operar as linhas para a Europa (Rubem Berta, dono da Varig, é figura central no livro – quase um Darth Vader da aviação civil). A pesquisa vem de matérias publicadas à época e, principalmente, dos autos do processo de falência, que revelam uma justiça corrupta e conivente com a Ditadura. Para falir a Panair, inúmeros ritos processuais foram solenemente ignorados; documentos e pareceres foram fraudados; o Ministério Público foi calado quase à força.
O trabalho é, principalmente, a história desse processo. E se Daniel Sasaki teve o grande mérito de desenterrar algo do qual a minha geração pouco ouvira falar, o livro peca pela ausência de material humano. Para além dos donos da empresa, há quase nenhuma informação sobre as aeromoças, comandantes e funcionários – como estarão hoje? Sabemos pelo livro que eles continuam se encontrando anualmente para relembrar os “tempos da Panair” – mas sua voz, a atual, não aparece. Uma pena.
Também está fora do livro qualquer referência mais aprofundada sobre a relação entre a TV Excelsior e a perseguição à Panair, que tinham um acionista em comum: Mario Wallace Simonsen, dono da emissora. A Excelsior havia apoiado João Goulart à Presidência e foi igualmente perseguida após o Golpe, até fechar. Mas essa relação não é mencionada com mais detalhes.
De qualquer forma, vale muito a leitura. Em tempos sombrios como os de hoje, é sempre bom lembrar que a violência da Ditadura não foi cometida apenas no escuro dos porões, mas também sob a luz dos tribunais, contra empresas idôneas e lucrativas tanto contra “subversivos” e “guerrilheiros”.
EPÍLOGO
A Varig de fato assumiu todas as linhas internacionais da Panair em 1964 e tornou-se a maior empresa brasileira de aviação civil, por muito tempo. Ironicamente, quebrou em 2006 alegando vários dos problemas financeiros imputados à Panair pela Ditadura. No exato dia em que a crise da Varig veio à tona, eu estava em Santiago do Chile, voltando para casa depois de uma viagem de férias. Consegui chegar a São Paulo num voo da Aerolíneas Argentinas e me vi no pandemônio do Aeroporto de Guarulhos tentando entrar em um voo para o Recife, disputando atenção dos atendentes com centenas de passageiros vestidos com a camisa da seleção brasileira que tentavam, ao mesmo tempo, embarcar para a Copa da Alemanha. Não consegui e meu último voo pela Varig não aconteceu. Comprei uma passagem para dali a dois dias pela Gol e passei o São João mais solitário da minha vida em São Paulo, no Museu da Língua Portuguesa, que acabara de ser inaugurado. O Museu exibia uma belíssima mostra em homenagem a Guimarães Rosa, o que me levou finalmente a ler Grande Sertão: Veredas. Diadorim e Riobaldo entraram na minha vida por causa da falência de uma companhia aérea, vejam só. Mas isso é história para um outro post.