O corpo da literatura

IMG_4977É o caminho mais óbvio resumir O senhor agora vai mudar de corpo como um romance que trata da experiência de Raimundo Carrero na recuperação de um AVC. Sim, o livro foi escrito no calor da doença que paralisou o lado esquerdo de seu corpo e impôs o reaprendizado dos movimentos e da vida sob limitações e cuidados. Mas, se muitas leituras são possíveis em qualquer obra literária, prefiro outra: pra mim, então, O senhor agora vai mudar de corpo é um livro sobre a fé na literatura.

Nas noites insones de incerteza quanto ao futuro do corpo, são livros e personagens que vêm ao encontro d’O Escritor para lhe fazer companhia nas dúvidas e nas certezas. Enquanto a proximidade do AVC ainda o impede de falar, a memória está repleta das experiências literárias, de outros autores e das suas próprias. No meio da crise, O Escritor se vê impelido a buscar metáforas e palavras apropriadas para descrever mentalmente suas angústias.

Encontra em Clarice Lispector e em James Joyce o coração selvagem da vida, no qual não deixa de estar inserida a sua dor. Cita ainda Marguerite Duras, Dostoiévski, Tolstói, Ernest Hemingway, Herman Melville,Victor Hugo e vários outros que, antes dele, também se dedicaram a expor a condição humana por meio de palavras.

Em meio ao turbilhão da imobilidade, O Escritor equipara sua fé literária à religosa, ambas alvo de dúvidas e questionamentos:

Comer frutas é tão bobo quanto recitar sonetos líricos. Escrever palavras românticas, saborosas, líricas, bobas, é tão cruel quanto assassinar uma criança de berço. Não é surpreendente, nada para ele agora é surpreendente, e escrever tanto lhe parece a salvação eterna quanto um ato inútil. A inutilidade da escrita o apavora. Escrever para quê? Por quê? E o quê? Às vezes também pensa na inutilidade da religião. Mas não é nisso que quer pensar agora. Basta comer melancia, beber suco de laranja e considerar que tudo isso não passa de sua absoluta decadência.

Para além da experiência traumática da doença, O senhor agora vai mudar de corpo revela também os caminhos que levaram Carrero à escrita. Quem acompanha eventos literários, provavelmente já o ouviu falar do encontro com os livros guardados sob o balcão da mercearia de seu pai, no Sertão de Pernambuco; dos primeiros contos e do estímulo de Ariano Suassuna; da adesão ao Movimento Armorial, em que se inseriu seu primeiro livro publicado; da necessidade de escrever sobre a condição humana. Mas ler tudo isso inserido em um romance apresenta outra dimensão aos caminhos da criação literária na obra de Carrero – sua voz, na palavra escrita.

O senhor agora vai mudar de corpo é um livro pra se ler principalmente depois de alguma familiaridade com a obra do autor (se você não leu nada dele, experimente os três primeiros compilados em O delicado abismo da loucura e depois Minha alma é irmã de Deus). Isolado, ainda assim, é um grande texto em defesa da literatura como exercício dialético da compreensão das dores e das alegrias do outro, esse misterioso espelho de nós mesmos.

PS: A imagem de destaque deste post é um quadro de Frida Kahlo, em exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

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