O anúncio de que a editora CosacNaify vai fechar até o fim deste ano deixou uma legião de bibliófilos chocados, dentre os quais os autores desse blog. A notícia foi à público na noite do dia 30/11, exatamente quando o escritor Estevão Azevedo era anunciado como vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura com Tempo de espalhar pedras – ironicamente, publicado pela Cosac.
As lamentações pela internet começaram praticamente de imediato, com direito à publicação em massa de trechos de livros publicados pela casa. Mas por que tanta comoção por causa de uma editora, se há tantas?
A maior parte delas, com raras exceções, trata a composição dos livros praticamente como numa linha de montagem. Alguma atenção é dada às capas, em geral exageradas para chamar a atenção nas livrarias, enquanto as páginas internas serão, na melhor das hipóteses, iguais em todos os livros. Mais comum é que sejam francamente mal-cuidadas.
Para além dos critérios de escolha dos títulos – e isso já está sendo amplamente explorado pela imprensa e blogsfera -, a CosacNaify cuida como ninguém do livro. Da capa ao miolo, do papel à escolha das fontes, todos os detalhes valorizaram as obras e fazem com que o objeto seja tão importante quanto seu conteúdo.
Esse capricho vem quase sempre na forma de elementos muito sutis. Pouca gente deve ter notado, mas o livro de Estevão Azevedo, por exemplo, foi impresso não em preto, mas em um tom escuríssimo de roxo. E se isso faz nenhuma diferença objetiva com relação aos caminhos do romance, certamente faz o leitor se sentir especial.
Ao ter em mãos um livro da Cosac, fico sempre pensando na quantidade de pessoas que dedicaram seu tempo a fazer de nossa experiência algo fora do comum. Nunca com pirotecnicas, pelo contrário: a tônica da editora é a delicadeza.
Ainda chocada e com a vã esperança de que tudo não tenha passado de uma pegadinha, fiz uma seleção de exemplos tirados da nossa biblioteca para explicar na prática por que a Cosac é a Cosac.
Entre os exemplos, alguns que levam a crer que a conhecida ousadia da editora foi um estímulo para o nascimento de trabalhos já concebidos sob uma lógica diferenciada, com um diálogo indissociável entre conteúdo e design.
1. O suplício de Papai Noel, de Claude Lévi-Strauss
Uma luva vermelha e transparente cobre a capa branquíssima desse livro-ensaio do antropólogo francês sobre o mito do Papai Noel. Branquíssimas como a neve são também as páginas do livro, impressas em caracteres negros, um arranjo quer seria absolutamente ordinário, não fosse um detalhe: todos os acentos gráficos do texto são vermelhos. Todos. Seriam pequenos pontos de sangue na neve?
2. Nova Iorque Delirante, de Rem Koolhaas
Não tenho nenhuma vergonha em admitir que comprei esse livro pela capa, em uma promoção no site da editora. O tema, obviamente, também me interessava. A junção das duas coisas, conteúdo e design, faz com que este livro seja muito especial. Enquanto o arquiteto holandês se debruça sobre Nova Iorque, em toda a maluquice que é a ultraconcentração humana nos arranha-céus, a editora nos presenteia com um projeto gráfico que complementa o debate sobre verticalização proposta pelo autor, com infinitas linhas paralelas ao longo da edição.
3. Caderno de um ausente, de João Anzanello Carrascoza
Em algumas ocasiões, o projeto gráfico da Cosac dá vazão a ideias dos escritores. Em Caderno de um ausente, Carrascoza achou que vírgulas e pontos não eram o suficiente para exprimir algumas das pausas de seu texto. Em vez dos sinais gráficos, então, adotou espaços prolongados entre as frases. A editora embarcou na viagem e imprimiu o livro inteiro na cor salmão. As pausas, então, se transformaram em retângulos brancos no meio do texto – a expressão física da suspensão desejada pelo autor.
4. Opsanie Swiata, de Verônica Stigger
Se o livro é legal, o projeto gráfico é sensacional. Nesse caso, foi pensado não apenas como um detalhe, mas como parte integrante do conteúdo. Se bem me lembro das declarações de Verônica Stigger à época em que recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura, em 2014, ela deu indicações muito específicas sobre a organização visual de seu romance e forneceu pessoalmente as ilustrações que complementam a narrativa. Opsanie Swiata é impresso em páginas cinzas, roxas, douradas e areia, com texto em roxo escuro.
5. Celular – 13 histórias à moda antiga, de Ingo Schulze
Os treze contos desse escritor alemão contemporâneo estão divididos em três capítulos – e a forma como essa divisão é apresentada é um dos maiores exemplos das sutilezas da Cosac. Não há capítulo 1, 2 e 3 numerados dessa forma. Em vez disso, cada capítulo é precedido de um, dois ou três traços vermelhos na página de abertura. Depois, os traços são replicados no canto de cada página, de forma que a divisão é visível olhando-se o livro pela lateral. Obviamente, não há nenhuma explicação sobre isso no volume -e aposto que muita gente passou batido.
6. 50 poemas escolhidos pelo autor, Manuel Bandeira
O miolo do livro não está entre os trabalhos mais impressionantes da Cosac Naify, embora seja classudo e bem acima da média, com títulos dos poemas em vermelho e a numeração da dupla de páginas concentrada apenas na da esquerda, próxima do centro do livro. Mas a obra de arte está na capa, em degradê azul, com textura em ranhuras. A editora publicou vários livros de Bandeira com essa pegada. O outro que temos em casa, Apresentação da poesia brasileira, tem capa em degradê laranja.
7. Pawana, J.M.G. Le Clézio
O conto em que o escritor francês se inspira no clássico Moby Dick, de Herman Melville, saiu pela Cosac com capa dura e ilustrações de Guazzelli, que aparecem em página inteira ou páginas duplas, além de compondo também elementos extra-textuais. Todas as ilustrações usam apenas preto, branco e cinza chapado, exemplo da elegância com simplicidade que são marca da editora.
8. O africano, J.M.G Le Clézio
Até nas edições de bolso a editora sai da caixa. A série Portátil, por exemplo, saiu com capa meio padronizada e miolo sem grandes invenções. O detalhe, no entanto, vem na costura do livro, em laranja, uma das cores mais marcantes do grafismo da capa. Esse romance curto de Le Clézio, aliás, é excelente. Li pouco depois de ver o filme Tabu, do diretor português Miguel Gomes, e recomendo a experiência.
9. Contos maravilhosos, infantis e domésticos (1812-1815), Irmãos Grimm
São dois tomos concentrando as histórias orais recolhidas pelos irmãos alemães Grimm no começo do século 19 – a maioria já bem conhecida do público em todo o mundo, se não por seu registro escrito, certamente por causa das adaptações para o cinema. Esta edição da Cosac é um primor: ilustrada com material original de J. Borges, com miolo alusivo à estética típica da panfletaria em xilogravuras, comum na literatura de cordel, inclusive na cor do papel, variando entre amarelo, verde, rosa e azul. O lindíssimo projeto foi acompanhando da exposição Grimm Agreste, que ficou em cartaz no Sesc Itaquera. Ela relacionava os contos do livro ao universo do Sertão nordestino, tendo como elo de ligação principalmente o trabalho de J.Borges. Uma experiência incrível ver as matrizes de madeira de perto – o livro ganhando outra dimensão física, um presente e tanto para os bibliófilos.
A Cosac, com uma conjuntura interna muito especial e propícia, foi capaz de se firmar no mercado editorial justamente por sua possibilidade de investir em inovações na forma de fazer livros, sempre diferentes e belos. Também aprecio muito o estilo da editora e é uma grande perda para os leitores e para o próprio mercado. Mas, além dela, há outras editoras também que seguem pela mesma linha “menos comercial, mais pessoal” na edição de seus livros. Só que costumam ser editoras (bem) menores, já que justamente vão na contramão do mercado…
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Exato. O lance da Cosac é que ela consegue entregar qualidade em grande escala.
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Pois reconheço que nunca tinha lido nenhum livro da Cosac -e, certamente, os títulos também não me teriam chamado a a atenção- mas depois deste artículo, fiquei com pena de não ter nenhum no me estante. Agora é que vou procurar também pela editora da próxima vez que ande à caça de algo para ler fora da minha livraria. Obrigado!
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