Miró e a melancolia

IMG_5210A plateia está lotada e ansiosa. No palco improvisado para a Balada Literária, Miró ocupa a cadeira central, cercado de outros poetas por todos os lados. Quando chega a sua vez de falar, nem faz menção de pegar no microfone. Fecha os olhos, e começa a declamar ana rosa a plenos pulmões. O poema é um passeio de trocadilhos pelos bairros da capital paulistana: Ana Rosa mora naVila Mariana e não acredita no Paraíso. Miriam é um jardim de menina, e a vista não era assim tão bela. Miró passeia pela plateia enquanto declama com todo o corpo. Quase sai pela porta dos fundos, numa pausa dramática, mas volta correndo ao palco para terminar o seu poema e passar a palavra ao próximo escritor, Sérgio Vaz (assista ao vídeo aqui).

ana rosa (assim mesmo, em minúsculas) está em São Paulo é fogo, de 1988. Sua terceira obra, três anos depois de ter decidido largar o emprego de faxineiro na Sudene para viver só de poesia. Entre 1985 e 2012 foram onze livros, quase todos publicados sem editora. Neles, Miró explora a vivência de suas cidades (Recife e São Paulo), de seus bairros (o Centro do Recife e Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes), da pobreza, da violência da polícia, sempre com a marca da ironia. Mas em seu último livro, Miró dá protagonismo à melancolia, sentimento se não novo, talvez secundário no restante de sua obra.

Editado pela editora Mariposa Cartonera, que trabalha com capas artesanais de papelão, aDeus é o menos verborrágico dos livros de Miró. Se antes eram comuns os textos com personagens e enredos – crônicas da vida urbana, em versos – agora eles nos dá poemas curtos e com tom mais o introspectivo. Esse Deus, no entanto, não é nada sacralizado. Hora tem dúvidas se dança frevo ou maracatu, hora está de ressaca, hora assiste do shopping ao mundo se acabando. Miró busca um Deus mundano e pergunta-se se aquelas folhinhas verdes surgindo entre dois prédios não seriam um sinal de sua presença. Mas ele não está presente, a não ser por sua palpável ausência.  

Tem muito mundo se acabando em aDeus, talvez reflexo do momento delicado em que foi publicado. Miró perdera a mãe há poucos anos e passara a morar sozinho no apartamento que compartilhavam no conjunto residencial Muribeca, que por sua vez minguava (e continua minguando) a cada prédio desocupado sob ameaça de desabamento. A comunidade se desfazendo ao seu redor, a bebida tomando conta, quando deu por si Miró estava internado no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, sob os efeitos devastadores do exagero no álcool. Mas Miró viveu, saiu do hospital, lançou seu novo livro, foi homenageado deste ano na Bienal do Livro de Pernambuco. E mudou-se de Muribeca, “pra não morrer de álcool e solidão”, me contou.

A morte que ronda o poeta e que o seu bairro são a segunda presença marcante do livro, o verdadeiro Deus do aDeus. “Solidão é ver Muribeca se acabando” e “Muribeca está ficando nua com os peitos caídos de tanta injustiça”, escreve em dois poemas diferentes. E “onde eles vão enterrar os prédios-caixão?“, pergunta-se Miró, que em outro trecho revela estar tentando não parecer um poeta pessimista.

Ia escrever que “paradoxalmente”, mas não é por acaso que em aDeus Miró nomeia o conceito de alegrismo filosófico, sempre presente em sua obra. Esse alegrismo é a capacidade de ver graça, não importa quanta merda tenha sido espalhada no ventilador. Parece fácil de entender, mas não é. O humor de Miró não é fácil nem direto, talvez nem mesmo possa ser chamado de humor. Está mais para uma ironia finíssima, nem sempre fácil de apreender, capaz de transformar em poesia crítica um ônibus lotado ou a mendiga defecando na frente de uma igreja.

Engraçado porque inesperado, mas nem por isso menos violento. A poesia de Miró é como levar um tapa na cara, no meio do carnaval, de alguém com uma fantasia esdrúxula. Você pode até rir do susto, mas isso não vai eliminar a dor.

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