Snoopy da depressão

Dezenas de Snoopies gigantes e sorridentes estão espalhados por São Paulo neste momento, enquanto o McDonald’s enche o rabo de (mais) dinheiro oferecendo personagens de Peanuts como brinde do McLanche Feliz. Claro que fui lá buscar o meu: a troco de comer um cheeseburger com gosto fácil, levei pra casa um Woodstock bonitinho, que agora mora na minha estante de HQs. Tudo isso enquanto centenas de cinemas no Brasil exibem Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, o filme, que certamente está pescando muita gente atrás de uma historinha fofa e edificante.

Corro o risco de ser tomada como chata com este post – o que não seria exatamente uma inverdade – mas senti que devia fazer minha parte em prol da reputação de Charles Schulz, o criador dos Peanuts. Uma das obras mais complexas da cultura pop do século XX tornou-se uma commodity com pouca profundidade à medida em que Snoopies e Woodstocks foram se multiplicando em camisetas, adesivos, posters e material escolar. O mundo distanciou os personagens de sua essência – e de fofa, ela nunca teve muita coisa.

Charles Schulz desenhou Peanuts ininterruptamente de 1950 a 2000. Em 2004, a editora americana Fantagraphics começou a publicar a coleção The Complete Peanuts, em volumes primorosos em capa dura, reproduzidos iguaizinhos na tradução brasileira da editora L&PM. Graças a essa coleção, tive contato com a obra de Schulz tal qual concebida para ilustrar as páginas de entretenimento dos jornais diários. Mas a despeito do espaço e do mote – historinhas curtíssimas sobre um grupo de crianças num subúrbio americano – Peanuts é uma série muito sofisticada sobre sentimentos como frustração, rejeição, ansiedade.

A tirinha manteve-se incrivelmente homogênea ao longo dos 50 anos em que foi publicada. Salvo a evolução do desenho, que se consolida rapidamente nos traços que ficaram famosos, os motes e as gags mudam muito pouco. O núcleo de personagens principais recebe vários outros acréscimos ao longo do tempo, mas as estrelas Charlie Brown, Snoopy, Lucy e Linus continuam na linha de frente ao longo das cinco décadas.  E se as três primeiras tiras publicadas em 1950 dão uma prévia do que virá até o ano 2000, seus temas são, respectivamente, o desprezo, a violência e a decepção:

IMG_00101. – Olha, lá vem o Charlie Brown! – O bom e velho Charlie Brown, sim senhor! – O bom e velho  Charlie Brown… – Eu odeio ele!
2. Meninas são feitas de açúcar e pimenta – … e de tudo o que é legal… – PAF! – É disso que são feitas as meninas.
3. [Sem texto] 

O sarcasmo e a ironia são a tônica permanente de Peanuts, tendo Snoopy como o seu mais fiel escudeiro. Dono de uma lógica toda própria, o beagle usa a imaginação para assumir novos personagens e aventuras cujo final via de regra dá errado.  No volume que estou lendo agora, Snoopy tenista resolve participar do torneio de Wimbledon (Inglaterra), mas viaja no teto de um trem achando que o encontrará em uma cidadezinha perto de Kansas City. No meio da viagem, escreve para Charlie Brown iniciando a carta com um Querido Cabeção… Charlie Brown, como sempre rejeitado, lamenta que seu próprio cachorro não sabe seu nome.

Snoopy escritor é um espetáculo à parte e sobre o qual postarei algo específico aqui (um dia, talvez). Basta dizer que a psicodelia com que assume suas diversas personas traz também uma crítica bem pouco sutil às profissões, ao esporte, à história e a vários outros campos do conhecimento humano, às vezes de forma bem ousada para uma sociedade americana conservadora. Por exemplo, a primeira da série Snoopy teólogo, publicada em setembro de 1976:

IMG_0035– Soube que você está escrevendo um livro de teologia. Espero que tenha um bom título. 
– Eu tenho o título perfeito… “Já Te Ocorreu Que Você Pode Estar Errado?”

Os Peanuts são talvez a maior história de má interpretação em massa de uma obra de cultura pop no mundo, em parte por culpa de seu próprio criador. Charles Schulz licenciou seus personagens para uso comercial sem muito critério, o que abriu as porteiras para a superficialidade de sua compreensão. É difícil vender um beagle sarcástico e seu dono complexado, mas se os dois estão abraçadinhos sorrindo, o mundo é mais cor-de-rosa – e certamente mais lucrativo.

Caminho diferente trilhou Bill Waterson com o seu Calvin & Haroldo, que expande a ideia central dos Peanuts de maneira genial, inclusive com ousadias gráficas que estabeleceram novos parâmetros para as tirinhas dominicais nos jornais americanos. Jamais licenciados para qualquer produto, Calvin & Haroldo nunca tiveram (e nem terão) a popularidade dos Peanuts, mas mantêm a integridade proposta por seu criador.

Ambos, é verdade, sofrem com as montagens de internet em que as falas dos balões são alteradas a bel prazer de quem tenha uma mensagem de autoajuda pra colocar em seu lugar, com dois dedos de Photoshop.

Não deixa de ser incrível que Snoopy e companhia tenham saído das páginas dos jornais para virar um fenômeno reconhecível praticamente em todo o mundo. Mas não deixa também de ser melancólico que os personagens tenham virado um sinônimo de felicidade e inocência quando nasceram do absoluto contrário: da complexidade humana em toda a sua riqueza e profundidade; da intenção de que ríssemos de nossas próprias falhas, reconhecíveis num grupo de crianças problemáticas e um cachorro alucinado.

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