Poesia não é o meu forte e vocês já sabem disso, mas também são testemunhas de que venho me interessando cada vez mais por essa forma de expressão. Daí que a homenagem da Flip deste ano à poeta Ana Cristina César veio bem a calhar – nada melhor para atiçar a curiosidade do que o total desconhecimento sobre alguém de quem todo mundo ao seu redor está falando. Pois sim, confesso: nunca tinha ouvido falar de Ana C.
E confesso mais ainda: nem era o meu objetivo primário tentar conhecer sua obra durante a Flip, mas a polêmica que tomou as páginas da Folha de S. Paulo definitivamente me chamou a atenção. Para quem não acompanhou, às vésperas da Flip Felipe Fortuna escreveu o artigo Escolha de Ana Cristina César é marca do desprestígio da literatura; rebatido em seguida pelo texto Negar relevância a Ana C. é não conhecer discussão sobre poesia, de Laura Erber, seguido de tréplica dele e tréplica dela.
O título do primeiro artigo dá uma ideia geral do que Fortuna defendeu; de pronto, ele foi bastante atacado pelo conteúdo implicitamente machista de sua tese. Vamos lembrar, Ana Cristina César foi apenas a segunda mulher homenageada em 14 anos de Flip – antes dela, só Clarice Lispector. Lá meio meio do texto, ele ataca também a magreza da obra de Ana C., que publicou apenas um livro de editora em vida (mais outros três anteriores, artesanais).
Coube a Laura Erber lembrar que a Flip é um evento de mercado, uma festa para público, e a escolha da homenageada estava em total consonância com um interesse comercial: o relançamento da obra completa da Ana C. pela Companhia das Letras. Bingo. Depois desse barraco literário, saí da Flip com Poéticas embaixo do braço, um livro que reúne em volume único as 124 páginas publicadas pela autora em vida, mais umas 360 de textos que ela deixou prontos ou rascunhados antes de cometer suicídio.
Tem de tudo lá no meio: prosa, aforismos, poesia concreta, desenhos, uma história em quadrinhos e até, olha só, poesia. A intensidade é uma coisa comum em todos os textos; é difícil ler sem tentar imaginar de onde vêm aquelas metáforas tão pouco óbvias, ou adivinhar em quais frases há notas autobiográficas. Ela fala bastante na morte, e tentar relacionar qualquer alusão à angústia ao seu suicídio acaba sendo meio inevitável.
Mas Ana, aprendi na Flip, também foi uma estudante de literatura e tradutora, e seus textos poéticos e ficcionais nunca se afastam do pensar a escrita que fazia parte da sua atividade acadêmica e de sua vida profissional. Esse trecho de Correspondência completa, um dos seus livros artesanais, é bastante esclarecedor:
Escrever é a parte que chateia, fico com dor nas costas e remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior, boboca.
(…)
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas. (Correspondência completa)
Embora a carta tenha um remetente e um destinatário fictícios, a alusão a duas formas possíveis de leitura é bastante revelador de seu pensamento e indica, acredito, que ela defendia um hibridismo entre essas duas possibilidades. Mais tarde, em texto publicado em Antigos e soltos, ela afirma: “Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo biográfico. Ratazanas esses psicólogos da literatura – roem o que encontram com o fio e o ranço de suas analogias baratas”.
Então como a gente deve ler Ana C.? Do alto da minha ignorância poética, a compilação da sua obra me impressionou pela vontade de libertação, que passava, por exemplo, pela dubiedade de gênero. “Estou cansada de ser homem”, diz em um de seus textos em prosa. Também está lá o questionamento da opressão sobre a mulher, mas não de uma forma necessariamente engajada, nem orientada pelo ambiente doméstico, como fazia Clarice Lispector. Era literariamente consciente:
Ela desdenha do poema minuto, mas suas frases curtíssimas são muito potentes, assim como suas brincadeiras com poesia concreta e releituras de outros poetas – que em geral estão em citações a frases conhecidas no meio de seus poemas, mas há uma recriação inteira sobre O poema e a água, de João Cabral de Melo Neto, que é particularmente interessante. Alguns exemplos abaixo (clique para ampliar):
Ler Ana Cristina César não foi um passeio no parque – mas que boa literatura é? Terminei Poética com a impressão de ter confrontado novas possibilidades de escrita e de ter aberto na cabeça uma compreensão mais ampla sobre poesia.
PS: Por dessas coincidências do destino dos livros, Ana C. mora exatamente na prateleira abaixo de Manuel Bandeira na minha estante e seu Estrela da Vida Inteira é até ligeiramente mais magrinho do que Poéticas – vejam só como são as coisas. Mas Manuel Bandeira, claro, nunca foi nem será questionado pela magreza de sua obra.
PPS: A imagem de destaque é uma obra de Mira Schendell, fotografada por Carlos na Pinacoteca de São Paulo.
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Um comentário sobre “Duas ou três coisas que aprendi sobre Ana C.”