Baixei Guga, um brasileiro, a autobiografia do segundo maior jogador de tênis que o Brasil já teve (calma, que vou explicar isso mais adiante), em versão Kindle há pelo menos uns dois anos. E não li. Fui passando dezenas de outros livros na frente, esperando a hora certa para mergulhar nas muitas páginas do relato autobriográfico de Gustavo Kuerten.
O impulso para a leitura veio da performance de Guga como comentarista durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro. Na tela da TV Globo, o ex-tenista desfilou toda a simpatia que lhe é característica. E não teve medo de dar opiniões bem humoradas sobre vários esportes. Futebol, tênis, é óbvio, natação, boxe. Para ele não tinha tempo ruim. E, assim, a internet logo deu o veredito. Determinou que Guga é sensacional, que Guga é nosso ídolo. Que Guga é o #LabradorHumano.
Feliz, alegrão, sempre pronto para brincar, como a raça de cachorro tão querida. E Kuerten não deixou por menos. Logo postou um vídeo em que agradeceu o apelido, esbanjando carisma e alegria. Carisma que fez dele o cara mais procurado pela torcida nas andanças pelo Parque Olímpico. E que resultou até em um presente mais do que óbvio. Guga ganhou um filhote de labrador em um programa de auditório da emissora que o contratou como comentarista.
E então chegamos ao livro. Toda autobiografia, escrita ou não com apoio de ghostwriter, é necessariamente laudatória. Ninguém vai escrever mal de si mesmo. Mas Guga, um brasileiro surpreende por mostrar um Guga que não é apenas sorrisos. Você vai encontrar ali momentos de dor, angústia, dúvidas e até pequenas mazelas do garoto que saiu de uma ilha que tinha menos de 10 quadras de tênis nos anos 1970 para ser o número 1 de um esporte cuja elite é restrita a poucos.
Claro que todos os pontos de conflito do texto servem como uma espécie de comprovação de que Kuerten é um exemplo de superação, esta palavra tão gasta em tempos olímpicos. E ele é mesmo.
Guga não era um rapaz pobre. Tampouco rico. Classe média, em uma família de descendente de alemães, encontrou na união do pais, Alice e Aldo, em torno do esporte, o combustível para incendiar seu desejo de ser grande. De início, poderia ser em qualquer modalidade. Mas o fato de ter sido o tênis o ponto de encontro que redundou no namoro e no casamento de seus pais foi um dos impulsos para sua trajetória.
Para chegar “lá”, o caminho foi longo e árduo. Seu pai dizia para quem quisesse ouvir. Guga vai ser top ten no tênis. Isso quando o garoto tinha 4, 5 anos. Dessa projeção alucinada nasceu o campeão. Acontece que Aldo morreu aos 41 anos, enquanto arbitrava uma partida infantojuvenil em Curitiba. Guga e seu irmão mais velho, Rafael, estavam lá. Não viram o infarto fulminante do pai porque jogavam em outras quadras. O que poderia ser a desistência definitiva de um esporte no qual o pai morreu, foi na verdade a razão de ser da vida esportiva de Guga, que queria a todo custo cumprir a “profecia” do pai.
Não vou contar todo o livro, pra evitar a fúria da editora Sextante. Recomendo demais a leitura. Não espere encontrar uma obra prima literária. Mas é um texto bem escrito, aliado a uma trajetória repleta de acontecimentos interessantes, muitos dos quais de coincidências e conjugação de fatores tão absurdas que dão vazão a uma certa leitura mística por parte de Guga, embora ele não atribua nada a deuses e sim ao trabalho que fez, ao apoio da família, à obstinação do pai e à presença de Larri Passos, técnico que foi escolhido pelo seu Aldo semanas antes de sua morte. E que cumpriu a palavra de que nunca abandonaria Guga até fazer dele um campeão, como era o desejo, e a crença, do pai do tenista.
O livro começa com a narrativa dos jogos do primeiro título em Roland Garros, no ano de 1997, alternando com o relato da infância. São capítulos iniciais alucinantes, com um ritmo que te convida a ler sem parar.
Depois do ponto final sobre Sergi Bruguera, o relato segue um curso mais linear, fazendo um raio X sobre a carreira de Guga até o topo. O momento em que os problemas no quadril afetam o desempenho do número 1 do mundo é relatado com um recado a quem o criticou na época do começo do declínio. Críticas que vinham da cobrança de performance e perfeição por parte de imprensa, torcida e patrocinadores.
Também é comovente a história de Gui, o irmão mais novo de Gustavo, que morreu aos 28 anos em decorrência dos problemas que enfrentou desde o nascimento com um diagnóstico de paralisia cerebral. Foi para Gui que Guga sempre dedicou os troféus reluzentes que começou a ganhar ainda na infância. E era para Gui e para o pai que Guga diz ter jogado em toda a carreira.
A biografia tem outros aspectos interessantes. Bastidores dos torneios, impressões de Guga a respeito de caras icônicos do tênis mundial, como Federer, Kafelnikov, Agassi, Sampras, Nadal, Djokovic e muitos outros, permeiam os relatos. Ficamos sabendo também sobre os detalhes da preparação para chegar ao topo e se manter lá. Se no começo de carreira Guga viajava com dinheiro contado e pagava para jogar, ao entrar no restrito clube dos grandes campeões, passou a ser tratado como celebridade e teve de montar um estafe com preparador físico, assessoria de imprensa, gerenciamento de contratos e uma equipe pronta para dar suporte a um duro calendário de torneios, obrigatório para quem está entre os melhores.
Para quem conhece pouco do tênis e de suas regras, uma boa notícia. Os relatos de partidas são muito didáticos e os jargões específicos do esporte são explicados, para que ninguém se perca entre top spins, lobs, winners, backhands e outros bichos.
Guga também não esquece da tradição. E trata de reverenciar seus ídolos, como Borg e McEnroe. E como prometido, a explicação para a afirmação do começo desta resenha. Embora Guga soubesse dos feitos de Maria Esther Bueno, não tinha dimensão do quanto era , e ainda é, reverenciada no mundo do tênis, até perceber que seu nome consta de todas as listas das maiores jogadoras de tênis da história. Afinal, são 71 títulos de simples, 7 anos à frente do ranking, 9 grand slams em simples e 11 em duplas. Como este blog acredita na igualdade de gêneros, reafirmamos: Guga é o segundo maior jogador de tênis do Brasil. Muito à frente dele vem Maria Esther Bueno, a quem ele presta muita reverência.
Termino esta resenha com um relato pessoal.
Nos anos 1990 cobri o circuito Sul América de Tênis Juvenil, que relevou jogadores como Flavio Saretta, Marcelo Melo, Carla Tiene e outros tantos e tantas. Em uma das etapas do circuito estávamos no Esporte Clube Pinheiros. E a equipe brasileira da Copa Davis treinava em uma das quadras. Estavam lá Fernando Meligeni e Jaime Oncins, já conhecidos e com carreiras de destaque. A garotada do torneio juvenil ficou em êxtase e correu para os autógrafos e fotos com seus ídolos. Foi então que o árbitro geral do torneio, Carvalhinho, me deu a dica.
– Entrevista o magrelo cabeludo. É Gustavo Kuerten. Ele ainda vai ser grande no tênis.
Achei graça, mas segui a dica. Guga estava em seu segundo ano como profissional e era estreante no time principal da Davis. Falei com ele, pedi que me explicasse a pronúncia do nome. A primeira reação dele foi de espanto.
– Vai me entrevistar? Ninguém me conhece. Fala aí com o Fininho (Meligeni).
Dei risada, insisti e fiz a entrevista. Lá pelas tantas, perguntei qual seria o maior sonho dele no tênis. Guga, simpático, engraçado e tímido, não teve dúvidas e cravou.
– Entrar na quadra principal de Roland Garros e jogar contra um top ten. Nem precisa ganhar.
Guga foi além. Pouco menos de um ano depois dessa entrevista entrava pela quadra principal de Roland Garros. Não apenas para enfrentar um top ten. Entrava para a fazer história no tênis.
E para quem não tem dimensão do que foi Guga, um dado. Desde de o começo da chamada era aberta do tênis, quando o esporte se profissionalizou, há quase 50 anos, menos de 20 jogadores terminaram o ano como número 1 do mundo. Guga é um deles. Além disso, ele mudou o estilo de jogo do saibro, aliando técnica com agressividade, o que levou a ATP a conceder a ele um prêmio dado a quem de revolucionou a forma de jogar. E Guga já foi para o Hall da Fama, muito antes de outras lendas do esporte.
Portanto, leia a biografia do Labrador Humano. E não ligue para altas doses de sentimentalismo que brotam das páginas. Até isso você vai superar.
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