Sexo, amor e morte

Um sábado em Barcelona. Depois de enfrentar chuva e fila para visitar o Museu Picasso (e valeu à pena!) Renata e eu iniciamos um périplo pelas ruas, e bares, da cidade. Do almoço até chegarmos ao hotel, lá pelas 22h00, foram quatro paradas em bares, quatro garrafas de cava, algumas cervejas e outras tantas doses de conhaque.

Do Bairro Gótico, passando pelas Ramblas e Eixample, parando para ver um jogo do Barcelona na TV em um boteco, durante outro pé d´água, até a chegada tardia a um sebo, já fechado naquele começo de noite e a entrada triunfal e trôpega no bairro de Gràcia, reduto de estudantes e de vida noturna agitada.

E eis que entre um bar e outro, nos deparamos com uma perdição maior que as cavas catalãs. Uma livraria. Reluzente, movimentada, ali pelas 20h30 de uma noite gelada. Entramos sem qualquer interdição. Afinal, quem bebe muito fica rico, né? Que o digam as entradas de muitos euros, compradas no embalo das cavas, para um jogo do Barcelona na Champions League.

Na livraria, não foi diferente. Até hoje, não temos a certeza de quantos livros compramos. Sim, compramos vários e os colocamos nas estantes de casa. Tinha Vila-Matas, nosso escritor catalão de estimação, e alguns outros autores, que o moço da livraria pacientemente nos indicou. Entre eles, estava Los sempiternos, livro de contos então recém lançado pela Editorial Base e ainda sem tradução para o português, como de resto toda a obra deste engenheiro valenciano que virou escritor.

Demorei pouco mais de um ano para localizar Cutillas em nossa biblioteca. E ataquei o breve livro de 112 páginas com afinco.

Como um Cortázar às avessas, Cutillas começa o livro dizendo ao leitor que a ordem dos contos não precisa ser respeitada. Mas, como ele escreveu um prólogo e um epílogo, espera de nós a obediência à sequência natural dos capítulos. Começamos pela morte, o prólogo e vamos terminar no sexo, o epílogo. E a cada breve conto, histórias fantásticas, absurdas, bizarras, sonhos ou pesadelos acometem as personagens, que podem ser um solitário turista de camisas havaianas, um sujeito que tem compulsão por intimidar pessoas com falsas confidências e seu psicólogo, outro que sonha com sua própria pessoa se multiplicando em meio a uma noite de tempestade. Uma fábrica na qual os funcionários tomam o poder matando diretores, gerentes e chefes e criando um sistema de justiçamento baseado na morte.

Curiosamente, a leitura de Cutillas me manteve mergulhado no universo dos contos fantásticos de Murilo Rubião, minha leitura anterior, que resenhei aqui. Se em Rubião, os contos foram escritos ao longo de décadas e publicados postumamente em Obras completas, a construção dos contos do espanhol foi claramente planejada como um conjunto de contos meticulosamente costurados.

Os contos de Los sempiternos têm vários fios condutores. Alguns explícitos. Outros sutis. O mais óbvio deles é a onipresença de estranhos homens vestidos de branco, com guarda-chuvas brancos, aparecendo repentinamente na vida dos personagens. E mudando seu destino.

Outro elemento comum é que cada capítulo tem por título um verbete de dicionário. Amor, destino, ambição, paranoia, estupidez, caos, sonho, mentira e tempo. Além do prólogo morte e do epílogo sexo. Cutillas montou um quebra-cabeças cheio de lógica interna, em que cada capitulo pode realmente ser lido de forma independente. Mas são contos que formam também uma espécie de romance que se cria na cabeça do leitor. O capítulo final, dedicado ao sexo, é o mais irônico, mordaz e sacana conto que já li, porque tira uma onda com o leitor e desmonta a advertência inicial da leitura linear. Mas não posso fazer spoiler.

Por fim, este quase romance é guiado também pelo seu mais interessante fio condutor. A cidade de Barcelona. Do conhecido Park Güell, às ruas do bairro Gótico e endereços da cidade alta, Barcelona é uma presença sempiterna em todos os contos. Ruas, avenidas e  referências por vezes cifradas de prédios e monumentos pululam nas narrativas te levando o tempo todo ao Googlemaps. Ainda mais para leitores como eu, ligados em mapas e caminhos.

Terminei a leitura ávido por mais Cutillas. Por enquanto, precisarei me abastecer pela Amazon, à espera de que uma editora brasileira comece a publicá-lo (alô Companhia das Letras !!!).

Ou então, convidarei Renata para mais um circuíto etílico pelas ruas de Barcelona até chegar com voz pastosa a um vendedor de livraria tentando lembrar o nome de Ginés S. Cutillas para pedir mais e mais livros.

E quem quer conhecer um pouco mais sobre este ilustre desconhecido autor (entre nós), pode visitar o site http://www.ginescutillas.com/.

2016-08-16 13.50.51

3 comentários sobre “Sexo, amor e morte

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