Juntar história e história em quadrinhos no mesmo livro não é exatamente uma ideia nova. Asterix, por exemplo, é uma saga que parte de personagens fictícios para contar episódios da formação do estado nacional francês a partir da fixação da identidade gaulesa. Os bravos resistentes da aldeia bretã, movidos pela poção de Panoramix e pela força descomunal de Obelix derrubaram as legiões romanas e conquistaram uma legião de fãs.
Feito o introito, chego aos livros em questão. De História. Em quadrinhos.
Trata-se de D. João carioca e As barbas do imperador, frutos da parceria entre a historiadora Lilia Moritz Schwarcz e o cartunista Spacca.
A sacada não é original, mas é genial. Usar a linguagem do HQ, com o primor do traço de Spacca, para contar dois momentos da formação do Estado Brasileiro.
Tudo começa em D.João carioca, o marido de Carlota Joaquina. Acossado por Bonaparte, que botava terror pela Europa e pretendia invadir Portugal, e aconselhado pelos “amigos” do império britânico, interessados no comércio com as colônias portuguesas, D. João toma a inusitada decisão de transferir para uma colônia a sede do reino de Portugal e Algarve. Ó pá. Escolhe o Brasil. E mais do que isso. O Rio de Janeiro. E cruza o oceano Atlântico se borrando de medo, trazendo a corte, as joias da coroa e, pasmem, a biblioteca real, o que incluiu um dos 5 exemplares da Bíblia de Gutemberg.
A narrativa é divertida, mas pontuada por uma visão crítica da história, que é marca da obra de Lília Schwarcz. Leitura obrigatória para entender a rápida transformação da vila colonial do Rio de Janeiro na capital de um reino, com todos os bônus e ônus, tais como a desapropriação de casas para instalar os nobres da corte portuguesa. A política de distribuição de benesses, com a nomeação de barões, condes e outros bichos aos borbotões, plantando em solo brasileiro a prática do clientelismo e da troca de favores. E decisões marcantes, como a autorização para a existência de imprensa (ainda que sob vigilância), de indústrias e de comércio (quase) livre nos portos.
D. João carioca mostra os conflitos internos do reino português em além-mar, a profunda cisão entre o rei e a rainha Carlota Joaquina, eterna conspiradora em favor dos interesses de seus parentes espanhóis, as guerras territoriais que em poucos anos fizeram o Uruguai ser província Cisplatina, Uruguai mesmo, domínio argentino e Uruguai de novo.
Essa história termina quando Bonaparte é parcialmente derrotado. E Portugal entra em ebulição, exigindo a volta do rei e a decretação de uma monarquia constitucional. D. João chega a mandar seu primogênito, o enfant terrible Pedro de Alcântara, para o representar em solo português. Mas, diante da ameaça de uma deposição, resolve enfrentar o pânico e volta a cruzar o oceano, se borrando de medo, é claro, em uma fragata escoltada por ingleses, sempre eles a nos tutelar durante aquele longo século XIX.
Daí chegamos às Barbas do imperador. E a D. Pedro II. Ué, mas o que aconteceu com o reinado de Pedro I, a independência, a primeira constituição brasileira. Tá tudo ali. Um pouco no primeiro livro um pouco no segundo. Mostrando um Pedro de Alcântara aventureiro, playboy avant la lettre, carregado de furor sexual e desprovido de cultura.
Ou seja. Um personagem de transição para o segundo reinado, quando então o conceito de Império tropical se afirma. Mas tudo começa com um imperador imberbe, feito príncipe regente quando seu pai, o Pedrinho bagunceiro, vai a Portugal se tornar o Pedro IV de lá.
Pedrinho primeiro deixa no trono um adolescente cercado de tutores. E estes tratam de moldar um caráter austero e culto para uma pessoa que sempre parecerá mais velho do que realmente é. E até que as barbas surjam e consolidem a imagem que a iconografia consagrou, D. Pedro II fará uma preparação intensa para conduzir o país. Mas existe um problema. Ele detesta a política miúda e está mais interessado em ciência, literatura romântica e viagens pelo Brasil e pelo mundo.
À sua volta, uma sucessão de guinadas políticas, arranjos parlamentares entre liberais e conservadores, a Guerra do Paraguai, conflitos comerciais com a Inglaterra (nos quais o Brasil sempre sai perdendo) e a chaga da escravidão manchando a imagem que o império brasileiro procurava difundir, de um país em que o índio e o europeu se encontraram e criaram uma mitologia do selvagem se moldando à civilização. Notem que a mitologia do segundo reinado tenta exaltar a “nobre tarefa” de civilizar o índio. Mas nega a existência do negro. O traço de Spacca mostra um rei com ar bondoso, elegante, amante das artes, mas titubeante diante das decisões históricas que poderiam ter feito dele um verdadeiro chefe de Estado. Cede à pressão oligarca e arrasta por todo seu reinado a decisão de acabar com a escravidão. E quando esta é finalmente abolida, com a assinatura de sua filha Isabel, durante uma de suas viagens, não passa de uma farsa, muito bem retratada em um dos quadrinhos, que mostra o quanto aquela lei era inócua, por não haver uma política de Estado de integração da força de trabalho escravizada à economia livre. O desgaste da monarquia e a falta de tesão do imperador pela política criam o ambiente para o reinado de Pedro II terminar por força de um golpe militar, que decreta uma República que poucos realmente queriam, promovendo a máxima do príncipe de Il Gattopardo, de que “é preciso mudar as coisas para que fiquem como estão.” Estava inaugurada a tradição brasileira de manobras (militares ou até constitucionais) para tirar do poder governos fracos ou perigosos para os interesses dominantes.
Ao fim da leitura veio a pergunta inevitável. Por quê as histórias em quadrinhos não são mais utilizadas nas escolas? A mágica desses dois livros está no uso de uma linguagem poderosa, a imagem, aliada a um texto simples, direto e bem humorado. Mais do que o talento da historiadora, o que temos é a capacidade do artista em traduzir conceitos complexos em uma cena.
Em vários momentos, nos dois livros, o que realmente importa é o que está desenhado à margem. O modo como o “povo” assiste ao espetáculo das elites. Detalhes da paisagem e expressões dos personagens que formam o contexto que a dupla Spacca e Schwarcz quer passar ao leitor. Sem deixar de lado os livros, que são fundamentais para a formação escolar, não podemos desperdiçar a força que a linguagem do HQ tem para prender a atenção do leitor.
As duas HQs, publicadas já nos anos 2000, em edição da Cia. das Letras, pelo selo Quadrinhos na Cia., trazem making offs da produção, com esboços, referências iconográficas e pictóricas usadas por Spacca para desenhar a história.
Lilia Scharcz não era neófita em fazer textos para HQs sobre história do Brasil. Nos anos 1980, produziu com Miguel Paiva Da colônia ao império: um Brasil pra inglês ver e, com Angeli, Cai o Imperio! República vou ver!, publicadas pela Brasiliense e fáceis de achar no Estante Virtual.
Por mais HQs nas escolas. História. Em quadrinhos.
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