Os vários palimpsestos de Elvira Vigna

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Uma das primeiras coisas que se nota em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, novo livro de Elvira Vigna, é que ela conseguiu fazer o putas passar quase despercebido na capa roxa com grandes tipos brancos. A estrela do título é mesmo o pouco comum palimpsestos, palavra que se refere aos pergaminhos que eram raspados para serem reaproveitados com novos textos. Os anteriores nunca saiam por completo, e os palimpsestos se tornavam um acúmulo de camadas de escrituras.

O romance que, acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, é ele próprio um acúmulo de palimpsestos, de camadas intermináveis de significados e de estruturas textuais que fazem deste um dos melhores livros que li este ano.  Assim como em outros de seus trabalhos, os relacionamentos humanos são a matéria principal de Elvira Vigna. A prostituição é apenas o McGuffin, como diria Alfred Hitchcock, para chegar ao que de fato é uma narrativa sobre questões de gênero.

João é o personagem principal dessa história, um técnico de TI empregado em uma editora à beira da falência, que passa as tardes contando suas aventuras com prostitutas a uma amiga arquiteta, que ele pensa ser lésbica. João não lembra dos nomes das garotas de programa, nem detalhes sobre suas fisionomias. Lembra das cidades em que os programas aconteceram e de seu próprio desempenho.

As aventuras do simplório João nos são contadas por esta amiga e, portanto, mediadas por um olhar não apenas feminino, mas também crítico e sarcástico. As sucessivas saídas com GPs vão se acumulando uma após a outra como um palimpsesto, a anterior sempre deixando seus vestígios na aventura seguinte. É assim também na construção do texto: quase um fluxo de consciência, quase uma conversa com o leitor, a narrativa é também um palimpsesto de pequenas histórias e de frases que se repetem e que vão evoluindo nos detalhes.

João é ele próprio um palimpsesto. Ele se acha muito transgressor por pagar para ter sexo com dezenas de mulheres desconhecidas, mas apenas repete o comportamento que lhe foi socialmente colocado por uma estrutura de poder milenar, que usa o dinheiro, a força física e o sexo como formas de dominação feminina. João, esse homem que é muitos homens, simplesmente não enxerga as mulheres ao seu redor. Não as ouve, nas as reconhece. Para ele, são seres mudos e invisíveis que existem apenas para sua conveniência – incluindo sua companheira.

As mulheres do romance, por outro lado, parecem irmanadas em uma guerrilha silenciosa, cometendo pequenos atos de revolta invisíveis senão a outras mulheres:

Os dois andando os poucos passos daquela rua, juntos, indo para o apartamento, em um programa em que dinheiro não é o mais importante. Ambos fazendo o que não está previsto. Uma transgressão, a dela bem maior do que a dele. Porque se o trabalho dela é trepar por dinheiro, ela não faz o que lhe é designado. Decide, ela. E a decisão é a de trepar tendo a certeza de que é porque quer.

E dizer não para dinheiro é algo bem mais radical do que qualquer coisa que João jamais tenha feito.

Elvira Vigna coloca essa discussão de maneira extremamente hábil, jamais caindo pro moralismo e passando longe também do discurso engajado. Isso não significa que o livro é menos político: é sim, mas a é partir da individualidade dos personagens que ela chega à condição humana universal.

Por isso, Como se estivéssemos em palipsesto de putas é um livro aberto a inúmeras discussões, inclusive sobre o tema da  prostituição no movimento feminista. Enquanto uma corrente defende ações de reconhecimento e proteção da atividade com a concessão de direitos trabalhistas, outra considera que a prostituição existe apenas como expressão da sociedade patriarcal, em que mulheres são usadas para o prazer masculino numa relação de poder mediada pelo dinheiro. Há quem defenda até mesmo a repressão policial à prostituição.

Seja como for, o romance ataca principalmente o poder desumanizador do machismo sobre as mulheres. Quando não é a relação comercial que se estabelece com a prostituição, é a necessidade de afirmação junto aos pares homens que orienta o comportamento de João, por exemplo, na forma como ele não enxerga nem reconhece sua própria esposa como uma igual. Interessante notar também que ele só conta sua história à narradora porque acha que ela é lésbica e portanto, em sua lógica tosca, merece ser incluída na irmandade dos machos.

Nesse Brasil em que a mulherada começa a dizer não a formas de assédio e discriminação até poucos anos consideradas normais, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas é absolutamente necessário.

Para coroar o romance, Elvira deixa também indicado um palimpsesto urbanístico, também tema do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. Parte das aventuras de João se dá em São Paulo, na Rua Augusta dos anos 1980, conhecida pelas saunas, inferninhos e prostituição de calçada. Essa Rua Augusta começa a ser apagada pela especulação imobiliária, que abastece o mercado de apartamentos minúsculos para pessoas que se sentem atraídas pelo clima do chamado Baixo Augusta – clima que vem, paradoxalmente, se extinguindo por este mesmo processo.

PS: A imagem de destaque desse post é um detalhe da obra Procuro-me/Procura-se, de Lenora de Barros, fotografada em exposição da artista na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo.

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2 comentários sobre “Os vários palimpsestos de Elvira Vigna

  1. Renata, querida, vim ler seu texto sobre o livro da Elvira Vigna, depois do comentário publicado no Letras. Realmente incrível a sintonia com o texto. Isso se chama sensibilidade literária; quando leitores de partes diversas do mundo comungam da mesma impressão com o que leem. Amei sua leitura! E agradeço publicamente a visita ao Letras. Ah, parabéns também pelo espaço – que eu não conhecia e já me senti aconchegado.

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