Existem duas formas de perceber os livros do escritor mineiro Jacques Fux: a primeira é se deixar seduzir pelas capas, títulos e releases das editoras, embarcando na face mais superficial dos seus romances, de tom quase sempre debochado. A outra é mergulhar um pouco mais e buscar seus comentários sobre a atualidade, a condição de judeu, o fazer literário e sua relação com a matemática. Meshugá, quarto livro de Fux (e o terceiro romance), está sendo vendido pela editora José Olympio como um “ensaio sobre a loucura”, em que o narrador “entra na mente” de oito judeus célebres para desvendar seus descaminhos. Mas é na análise sobre a intolerância no mundo de ontem e hoje que reside o ponto forte deste livro: ele diz muito mais sobre a sociedade humana e sua tendência à incompreensão da alteridade do que sobre as personalidades biografadas.
A lista inclui o cineasta Woody Allen, a filósofa francesa Sarah Kofman, o ator pornô Ron Jeremy, o filósofo Otto Weininger, o matemático russo Grisha Perelman, o enxadrista americano Bobby Fischer, o profeta Sabbatai Zevi e o fanático Daniel Burros que, apesar de judeu, foi um dos membros mais ativos da Ku Klux Klan nos Estados Unidos. Todos têm em comum o fato de que poderiam ser chamados de meshugá, a palavra em iídiche que designa pejorativamente o louco judeu. Assim, Fux delimita seu campo de escrita à minoria da minoria: dentro do conjunto do povo implacavelmente perseguido ao longo da história, centrou-se naqueles que se tornaram notáveis, de uma forma ou de outra, em função de seu comportamento considerado anormal.
Descontrole sexual, depravação, incesto, histeria, neurastenia, avareza, autodesprezo são apenas algumas das características atribuídas aos judeus ao longo dos séculos – muitas das quais aparecem nos personagens de Meshugá. No entanto, à medida que as minibiografias se sucedem, vai ficando claro que a loucura dos personagens concretiza-se a partir de estereótipos criados externamente. São, portanto, uma construção social baseada no preconceito. Sendo assim, a loucura acaba sendo assimilada pelo grupo discriminado como fato irrevogável e reverberada pelos seus próprios indivíduos, numa espécie de auto-ódio alimentado pela identificação com o agressor. Este aspecto aparece especialmente no personagem de Daniel Burros, criado como um religioso judeu na infância e que, além de membro da KKK, foi também fundador do Partido Nazista Americano, até que sua origem foi desmascarada por um repórter.
“[A loucura é criada pelo] olhar perverso do outro, do estrangeiro, daquele que vive as mesmas angústias, mas não aceita as angústias do outro. E a gente acaba aceitando tudo isso”, diz Fux. A referência do escritor é o povo judeu, mas comento com ele que o livro poderia ter sido escrito sobre mulheres, negros, gays ou outros grupos minoritários aos quais se atribuem estereótipos negativos – no caso das mulheres, inclusive o da loucura – reforçados socialmente numa frequência cotidiana. “Sim, o mote é judaico, mas quero tratar das questões das minorias. Dos grupos que sofrem bullying e que acabam aceitando esse olhar odioso. A mulher sempre foi subjugada, demonizada, ofendida. Muitas mulheres acabam aceitando e reproduzindo essa visão, e têm grandes problemas com a própria aceitação”, afirma.
A loucura do momento político brasileiro e global também rondava a cabeça do escritor na confecção de Meshugá. (Paradoxalmente, conversamos pelo Messenger do Facebook, um dos adventos contemporâneos que mais contribui para a criação de bolhas e, portanto, de barreiras entre nós e quem pensa diferente). “O problema é o não aceitar, e não ouvir. Ninguém conversa mais. Todo mundo defende o seu lado e o outro é o demônio, o estranho, o estúpido. O mundo está dividido e o radicalismo causa essas perseguições. Historicamente foi assim, estamos nos repetindo”.
Meshugá é também uma confluência de outros temas tratados por Fux em seus livros anteriores. Há um quê da autoficção presente em Antiterapias, seu romance de estreia vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013; a extrusão dos limites entre narrador e autor que dá a tônica em Brochadas, quase uma paródia ao mito do judeu hiper-sexualizado; e o contato entre dois campos do conhecimento aparentemente tão distintos, que foi objeto de seu estudo acadêmico em Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo. No novo romance, a matemática aparece não apenas na inclusão do personagem Grisha Perelman, mas principalmente na alusão à Cabala e ao misticismo judaico (que são baseados na matemática).
Assim como eu seus outros romances, Meshugá não tem uma estrutura óbvia. Até o capítulo final, são oito minibiografias que não se comunicam entre si. Entra, então, o narrador, que fecha o romance olhando para os seus personagens como num espelho de si. Enxerga a necessidade de pertencimento, mas ao mesmo tempo rejeita o olhar externo sobre os judeus e o olhar do judeu sobre os outros – um olhar também discriminatório. Pensa, como Lewis Carroll (outro apaixonado por matemática) em Alice no País das Maravilhas – Ele é louco. Ela é louca. Todos são loucos. O que significa, conclui Fux, que “talvez o outro crie a nossa loucura”.
PS: A imagem em destaque é foto de uma das instalações da exposição da artista plástica japonesa Yayoi Kusama que ficou em cartaz uns dois ou três anos atrás no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Kusama define sua obra a partir da obsessão e se interna voluntariamente em retiros psiquiátricos de tempos em tempos.
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