O Lombada Quadrada chegou ao escritor francês Georges Perec por duas vias paralelas. Referências a ele nos livros do catalão Enrique Vila-Matas. E pelos estudos do escritor Jacques Fux sobre literatura e matemática, que redundaram no livro que já foi resenhado aqui por Renata.
Perec fez parte de um movimento chamado OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potencielle, em tradução livre Oficina de literatura potencial) fundado nos anos 1960 na França por Raymond Queneau, e que além de Perec, teve também a participação de Italo Calvino, entre outros escritores europeus. A ideia central do OuLiPo era produzir literatura a partir de regras pré-estabelecidas, como tamanho de capítulo, ordenações matemáticas e muitas outras pirações. Perec, por exemplo, escreveu um romance inteiro com palavras que não têm a letra E, que é simplesmente a que mais está presente na língua francesa. Teve romance em palíndromo, livro de sonetos que permite ao leitor embaralhar os versos e construir com coerência milhares de outros sonetos. Ou seja. Um bando de loucos, criando regras altamente complexas para suas próprias obras, tendo Perec como um dos maiores entusiastas dessas saborosas maluquices literárias
Chegamos, então, ao livro A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento, uma pequena obra-prima que, ao contrário do que sugere o título, não é um manual de auto-ajuda para conseguir sucesso no emprego e extrair do seu chefe um aumento no final do mês.
Em pouco mais de 60 páginas, Perec nos faz conhecer um sujeito que trabalha no escritório de uma próspera empresa francesa. Seu chefe imediato é o Sr. X, a quem ele deseja abordar para pedir um aumento. Acompanhamos os dilemas do empregado em uma alucinante narração que se repete dezenas de vezes, em um périplo circular pelos ambientes do escritório. O funcionário teme não entrar na sala do chefe no momento certo. Teme não ser recebido. Teme não conseguir pedir o aumento. Apavora-se com a possibilidade de um não. Inseguro, indeciso, dá voltas, para na sala de uma secretária, vai tomar água ou apontar o lápis, sempre à espreita da sala do chefe.
Nas dezenas de giros que dá pelo escritório, vai armando em sua mente uma teia complexa de situações que envolvem a possibilidade de uma epidemia de sarampo acometer a família do Sr. X, ou este engasgar com a espinha do peixe no refeitório da firma, ou ainda cair de cama por causa de um ovo estragado do bandejão. O pobre empregado rumina consigo mesmo os horários e dias que podem ser inadequados para pedir aumento. Entrar antes ou depois do almoço? Jamais pedir aumento na quaresma, quando é frequente o consumo de peixe e a possibilidade do chefe engolir uma espinha e morrer é maior.
Tudo isso é narrado em uma linha contínua, sem vírgulas, parágrafos, capítulos. São 69 páginas sem pausas para respirar. E quando você interrompe a leitura, o faz de modo aleatório, torcendo pra lembrar onde parou. Por isso, recomendo atacar a obra naquela tarde de preguiça na rede e tentar ler tudo de uma vez.
Perec constrói um pequeno tratado sobre a burocracia, a produção em linha e a impessoalidade do mundo corporativo. Os percursos do empregado pelo escritório se repetem. No começo, você tem a sensação de estar lendo sempre a mesma história. Mas vai percebendo as inserções, muitas vezes sutis, de novos elementos à narrativa. Quase sempre carregadas de sarcasmo, lembrando o tempo todo como a engrenagem do trabalho mói. Um exemplo está na frase abaixo, que vai se repetindo com alterações:
“…só lhe restaria dar um novo giro pelas diversas seções cujo conjunto constitui a totalidade ou a parte da organização que o emprega.”
Que se repete assim:
“dar um giro pelas diversas seções cujo conjunto constitui a totalidade ou a parte da organização que o usa.”
Ou assim
“senão você dará um giro pelas diversas seções cujo conjunto constitui a totalidade ou a parte da organização da qual você não é uma das joias mais brilhantes.”
Com esses truques, o livro vai acumulando camadas de falsas repetições, que exigem uma leitura atenta para captar todos os sinais de ironia, a crítica ao automatismo do trabalho que permeia todo o texto e a história de uma pessoa comum, entregue à mediocridade das repetições diárias de acordar, pegar o transporte, bater o ponto, bater carimbo, voltar pra casa, dormir e começar tudo de novo.
Como diz o narrador, vamos simplificar, “pois é sempre bom simplificar”, e deixar a você, que chegou ao fim desta resenha, a dica: leia e divirta-se muito com Perec. E depois volte aqui para contar. A edição brasileira mais recente é de 2010, pela Companhia das Letras, com ótima tradução de Bernardo Carvalho.
P.S.: a foto que ilustra o post é de um diagrama do percurso do empregado nos ambientes da firma. Esse diagrama foi apresentado a Perec em 1968 por Jacques Perriault, e de imediato foi tomado como um verdadeiro desafio por um escritor do OuLiPo, uma vez que o diagrama já impõe uma série de regras à narrativa. Mais curioso ainda é saber que Raymond Queneau escreveu Un conte à votre façon, baseado no mesmo diagrama. Ao contrário de Perce, Queneau deixou ao leitor a possibilidade de escolha do percurso do empregado, estabelecendo uma regra diferente, mas uma regra. Logo vou procurar por ele, para ler e comparar. Por quê é sempre bom comparar.
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2 comentários sobre “A arte e a maneira de escrever um livro genial”