Roland Barthes morreu em março de 1980, em decorrência de sequelas deixadas por um atropelamento, em fevereiro daquele ano, quando atravessava a rua ao lado do Collège de France, escola onde lecionava. Barthes vinha de um almoço com François Mitterrand, que naquela época preparava sua enésima candidatura à presidência da França e buscava apoio dos intelectuais para enfrentar o então presidente Valéry Giscard D`Estaing.
Quem poderia imaginar que esta sucessão de fatos poderia dar origem a um romance policial? Mais do que isso. Seria fonte de inspiração para uma intrincada história de mistério que tem personagens reais, muitos dos quais ainda vivos, envolvidos em uma trama que mistura sociedades secretas, assassinatos, espionagem, guerra fria, os egos acadêmicos de universidades francesas e norte-americanas e uma campanha presidencial que marcou época na abertura dos anos 1980. Laurent Binet, que à época da morte de Barthes tinha 8 anos de idade, imaginou. E construiu Quem matou Roland Barthes? um engenhoso romance sobre a linguagem, utilizando personagens como Derrida, Foucault. Kristeva, Lacan, Althusser, Deleuze, Eco e muitos outros. Mesclando com figuras da cena pop, como Bono e políticos como o próprio Mitterrand, Jack Lang, Giscard, Fabius e outros figurões que deram as cartas na França dos anos 1960 aos 1980.
O ponto de partida para a trama de Binet é o atropelamento de Barthes, que ao ser atingido por uma camionete de tinturaria, teria consigo um documento ultra-secreto, com um texto de próprio punho do linguista Roman Jakobson, revelando ao mundo a sétima função da linguagem. Aqui, é preciso lembrar que Jakobson listou seis funções da linguagem, base de praticamente todos estudos posteriores sobre linguística. A tal sétima função da linguagem seria um ensinamento que daria a seu detentor a capacidade encantatória. Apenas com a palavra, esta pessoa seria capaz de convencer multidões sobre qualquer assunto, como a decisão de voto em uma eleição presidencial ou o discurso amoroso capaz de levar alguém a se apaixonar apenas pelo poder da oratória.
Em pouco mais de 400 saborosas páginas, Binet constroi uma trama policial digna dos melhores autores do gênero. Ele coloca em cena Bayard, um tosco e conservador detetive da polícia francesa, que é escalado para investigar o caso por conta da inusitada coincidência do atropelamento ter acontecido logo após Barthes almoçar com o líder socialista. Bayard percebe que jamais vai entender a conversa dos linguistas do Collège de France e dos geniais professores de Vincennes, a FFLCH parisiense. Para decifrar um código impenetrável, arregimenta Simon, um jovem professor de linguística que entretém seus alunos com aulas centradas no universo da cultura pop.
Bayard e Simon, fartamente abastecidos pelas generosas verbas do serviço secreto francês, têm a missão de descobrir o que pode estar por trás do atropelamento. E se Barthes portava algum tipo de mensagem secreta que ajudaria Mitterrand a finalmente ganhar uma eleição.
No percurso da investigação, passam por festinhas regadas a cocaína, maconha, muito álcool, sexo grupal e altas discussões acadêmicas. Mas começam a perceber que não são os únicos a perseguir as pistas dos documentos. Binet mistura na trama o serviço secreto soviético, um grupo de espiões búlgaros, japoneses misteriosos, jovens michês que circulam em torno de figuras como Foucault ou do próprio Barthes. E professores de universidades dos Estados Unidos, ávidos por descobrir os segredos dos intelectuais franceses. A trama passa por Paris, Ithaca, nos EUA, onde está a universidade Cornell, Bolonha, Veneza e Nápoles.
Não dá para contar mais, porquê, como em todo romance policial, Quem matou Roland Barthes? tem um final surpreendente, mais de um assassino, vilões e mocinhos improváveis, como Umberto Eco, que ainda estava vivo quando o livro foi publicado na França, em 2015. Eco, aliás, é peça central em momento crucial da trama, na qual conhecemos uma sociedade secreta, a Logos, que promove debates entre intelectuais. Debates estes cercados de um clima MMA, com uma forma surpreendente de punir os perdedores, em contendas que podem ser, por exemplo, as diferenças do barroco e do clássico.
Para ler o romance de Binet você não precisa ser doutor em semiótica. Para quem, como eu, que passou pelas aulas de Lucia Santaella, Carlos Gardin e Arlindo Machado, na PUC-SP – o antro semiótico brasileiro -, e tem alguma familiaridade com o tema, saltam aos olhos referências a textos clássico de Derrida, Barthes, Foucault e outros, enxertados no meio do romance. Mas para quem não é “de humanas”, o livro passa bem, pois o fio da história puxa pela curiosidade em torno do desfecho.
Ao fim da leitura, ficou evidente o tema central por trás dessa grande aventura literária: a palavra, ou o momento do começo de sua morte.
Não por acaso, Binet vai a 1980, ano efervescente na política mundial. Reagan está prestes a se tornar presidente dos Estados Unidos. Thatcher consolida seu poder e as reformas conservadoras no Reino Unido, na União Soviética, Brejnev está nas últimas e o obscuro Andropov se prepara para sair das sombras. Na Itália, atentados como o da estação de trem em Bolonha, que aliás aparece com força no romance, trazem à tona a ação de grupos de extrema esquerda e de extrema direita em um país dominado de fato pela máfia. E, na França, Mitterrand tem finalmente alguma chance de ganhar a confiança e o voto da maioria dos franceses, colocando socialistas pela primeira vez no poder.
Em meio a essa ebulição, Binet nos conduz a um momento da história em que o discurso, a oralidade, tinham uma força absoluta. Intensos debates acadêmicos eram travados em torno de opiniões fortes e bem fundamentadas. Grandes colóquios eram realizados nas principais universidades e arrastavam multidões de estudantes e professores. E, na política, uma entrevista ou debate na TV, ou ainda um grande discurso para as massas em um comício, pareciam valer mais do que os truques publicitários que começaram a tomar conta das campanhas eleitorais a partir da década seguinte.
Laurent Binet vai ao passado para jogar uma luz sobre nosso presente. Vivemos em uma era da explosão dos discursos voláteis, de debates estéreis nas bolhas da internet, nos quais não existe confronto de ideias. E na era em que a notícia falsa pode decidir uma eleição, derrubar reputações, julgar e condenar quem sequer pode apresentar defesa.
Dei muitas risadas ao longo da leitura de Quem matou Roland Barthes?. Mas também parei muitas vezes para pensar. E se um livro te faz pensar, vale a pena ser lido.
A edição brasileira, da Companhia das Letras, é muito boa, embora precise de uma revisão para as próximas tiragens, pois existem alguns erros de digitação. A tradução de Rosa Freire D´Aguiar merece nota. Um livro com tantas referências filosóficas, políticas, sociológicas e linguísticas (ai que saudade do trema) não é fácil para um tradutor.
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