Supremo tribunal digital

A leitura de O tribunal da quinta-feira é rápida. E envolvente. O novo romance de Michel Laub, publicado pela Companhia das Letras, tem uma narrativa alucinante. Capítulos curtos. Sempre algo por ser revelado. E você quer pular para o capítulo seguinte e o seguinte e o seguinte… E de repente se dá conta de que chegou ao fim das 182 páginas do livro.

Em O tribunal, Laub faz uma grande, e ligeiramente óbvia, analogia entre a disseminação do vírus HIV – ou a-i-de-esse, como grafa o personagem narrador – e a viralização (!!!) de informações nas redes sociais em tempos de internet. A história está centrada no relacionamento do narrador, um publicitário bem sucedido, sua ex-mulher, arquiteta, burguesa, de família esclarecida e engajada, e seu amigo de faculdade, outro publicitário bem sucedido e genial. Eles se tornam um trio a partir do momento em que Walter, o amigo, apresenta Teca para o narrador. E afirma que eles certamente se darão bem.

Por trás desse relacionamento, está uma transa anterior entre Walter e Teca. Sem camisinha. E o fato de que Walter saiu do armário e vive plenamente suas aventuras sexuais, nem sempre protegidas, nas saunas, festinhas e cinemas do universo gay.

Nas entrelinhas, está a teoria dos seis graus de separação. O narrador mostra o quanto suas ex-namoradas, os casos de Walter ou as transas de Teca se dão em círculos sociais que se interligam. Além disso, o livro carrega fortemente na comparação com as inúmeras possibilidades de relacionamentos aleatórios proporcionadas pelas redes sociais, uma espécie de amplificadora da teoria que nos diz que em seis cliques estamos ligados a inúmeras conexões com amigos dos nossos amigos, numa teia infinita.

Uma sombra é jogada sobre esse relacionamento quando Walter revela ao amigo que é portador do HIV. E essa informação vêm a luz quando Teca, no processo de separação, vasculha a caixa de e-mails do ex-marido e descobre um longo histórico de trocas de mensagens entre os dois amigos. Textos carregados de piadas misóginas e de ilações sobre uma possível disseminação proposital do HIV entre Walter e seus parceiros. Também vem à tona uma relação do narrador com a redatora-junior da agência em que trabalha, iniciada antes do fim do casamento. Relação que é comentada com brincadeiras machistas, baseadas no uso do poder de chefiar a criação da agência para transar com a mocinha que ainda nem terminou a faculdade e abusar dela sexualmente.

2017-03-18 11.44.03De repente, tudo é escancarado nas redes sociais. Em um fim de semana, a carreira bem sucedida do narrador é jogada na lata do lixo pela disseminação de trechos de suas conversas em mensagens de WhatsApp, grupos fechados de publicitários no Facebook e troca de e-mails entre os colegas e os clientes da agência. Tudo começa em um domingo. E se alastra até a quarta-feira, véspera do aludido tribunal do título do livro.

É nessa quinta-feira que se aproxima que o narrador, já demissionário na agência, voltará a encontrar a jovem namorada. Para o tribunal presencial, no qual ela lhe julgará. Será ele condenado? Terá atenuantes? Merecerá o perdão que não lhe foi dado pelas redes sociais?

Mais uma grande analogia do autor. Desta vez com o “supremo tribunal digital” em que marcas, pessoas, músicas, filmes, absolutamente tudo é submetido diariamente a julgamentos implacáveis. Júris são formados nas inúmeras bolhas da rede. E os réus raramente recebem votos favoráveis. A unanimidade vai sendo construída pela exclusão dos que pensam diferente. E, no fim, não há defesa possível, pois a sentença já foi dada por quem indicou que tal comportamento é inadequado. Ou que determinado compositor é um lixo. E por aí caminha este tribunal sem advogados de defesa, sem promotores, sem imprensa. Composto apenas por juízes cruéis e sanguinários.

Ao tratar de um tema tão atual e transportar para a narrativa as trocas de e-mails, mensagens de WhatApp e áudios entre as personagens do livro Michel Laub encarou os riscos de uma obra totalmente ancorada na realidade presente. A facilidade de leitura, a trama envolvente e os bons truques usados para capturar a atenção do leitor revelam que ele atingiu seu objetivo. Para quem leu Diário da queda, talvez seu melhor e mais impactante romance, este Tribunal certamente ficará aquém das expectativas. Mas pelas questões que Laub coloca em discussão, já vale a leitura. E para quem anda pelo mundo da comunicação, o livro também traz um pouco do universo das agências, mostrando um mundinho um bocado fútil e permissivo. O que talvez não seja nem um pouco inverossímil.

P.S.: a foto que ilustra o post é da obra “Map”, de  Qiu Zhijie, exposta na 31ª Bienal de Arte de São Paulo, em 2014.

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