“No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos a roubar com perfeição no jogo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do mundo”.
Poucas vezes vi tantas entrelinhas em tão poucas linhas. A frase inicial da crônica Tiro de Guerra Nº 35 é uma bela síntese do estilo que António de Alcântara Machado construiu em sua curta carreira de cronista na imprensa paulistana. Escrita concisa, quase telegráfica, vai no estritamente necessário e deixar para o leitor o preenchimento das lacunas, sejam narrativas, temporais ou de sentido. Não que esse leitor esteja totalmente livre: o autor sabe muito bem indicar o caminho que lhe convém, ao mesmo tempo em que esbanja graça e bom humor.
Alcântara Machado está longe de ser uma novidade: seus textos foram originalmente publicados na década de 1920 e até meados da década de 1930, quando morreu precocemente. Mas a atualidade do estilo e a leveza da experiência de leitura fazem dele um autor atemporal. Para quem mora em São Paulo, conhecê-lo é praticamente obrigação, já que a cidade era o seu grande cenário e o povo comum, especialmente imigrantes italianos, o seu material humano mais frequente. Seu trabalho está novamente acessível em livro com a publicação de Melhores Contos em uma edição de bolso da Global Editora, reunindo os textos do clássico Brás, Bixiga e Barra Funda, do menos conhecido Laranja da China, além de alguns textos avulsos.
Na frase que destaquei acima, econômica em palavras, somos apresentados simultaneamente ao caráter do personagem principal e à precariedade da escola brasileira – uma escola que ensina por decoreba um punhado de conceitos ufanistas completamente desconectados da realidade. Mais a frente, descobrimos que toda a cantilena nacionalista resultou em um Aristodemo soldado e patriota, capaz de enfrentar a tapas quem faz brincadeira com o Hino Nacional, embora ele mesmo embaralhe a letra, que sequer entende. Neste conto, o alvo é o Exército, mas Alcântara Machado expõe também a elite paulista quatrocentona, os imigrantes de fortuna recente, a classe política e as instituições de forma geral – “Filho de rico manda nessa terra que nem a Light”, dispara, em outra frase cheia de sentidos.
O texto evolui aos pulinhos, entre lacunas e não-ditos muito mais eficientes do que qualquer verborragia. O conto O monstro de rodas, por exemplo, está ambientado em um enterro. Lemos sobre a mulher desesperada que chora agarrada ao caixão, mas o conto termina sem que se saiba ao certo quem nem de que morreu – o importante são os tipos humanos que circulam pela cerimônia. Aliás, também está ambientado em um enterro o conto Gaetaninho, sobre um menino cujo sonho de andar de carro é realizado de forma trágica. Este texto, sozinho, é frequentemente saudado como uma obra prima.
Em muitos dos contos, o tema central é a tensão social entre ricos e pobres, numa comunidade em que a elite quatrocentona decadente, de origem portuguesa, começa a trocar de status financeiro com os imigrantes italianos ascendendo por meio da indústria e do comércio. Em Nacionalidade, junta-se ao tema a lenta aquisição do Brasil como pátria: um velho imigrante italiano, que sempre recusou a nacionalização, aos poucos muda de ideia ao perceber que encontrou a o potencial de mobilidade social para os seus filhos deste lado do Atlântico.
Já Lisetta antecipa o tema que Clarice Lispector abordaria de forma autobiográfica em Felicidade Clandestina: o embate entre uma menina pobre e outra rica em torno de um desejo comum, que só a pobre valoriza de fato – o livro As reinações de Narizinho, no caso de Clarice; e um ursinho de pelúcia avistado durante uma viagem de bonde, no texto de Alcântara Machado. Aqui, ele constrói mais claramente uma crítica à ostentação que aparece em pinceladas ao longo de quase todo o livro.
O salseiro que é a política brasileira, no entanto, é o tema mais frequente e talvez mais atual do escritor paulistano. As cinco panelas de ouro, que fecha Melhores contos, é o texto mais longo e em que essa crítica fica mais evidente. De uma abertura focada na vida doméstica de uma família ordinária numa cidade do interior, o conto evolui para narrar uma tentativa de adesão à Revolução de 1930 expõe a frouxidão das crenças políticas da sociedade local. A ideologia que muda ao sabor dos ventos, claro, termina numa briga por interesses particulares e absolutamente mesquinhos – um resumo do Brasil de todos os tempos.
A edição da Global traz uma boa introdução sobre a obra de António de Alcântara Machado e a contextualiza à luz do Modernismo. O texto de Marcos Antonio de Moraes também discorre sobre o seu estilo, econômico inclusive na pontuação, e coalhado de referências ao cotidiano lido nos jornais.
Alcântara Machado morreu com apenas 34 anos. Fico pensando quantas mais páginas deliciosas perdemos com isso.
PS: a foto em destaque é da obra Fase Azul (Numbers), de Jac Leirner, fotografada no Instituto Inhotim.
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