Quem está profundamente chocado com as revelações da operação Carne fraca, que revelou mazelas do processamento de proteína animal pelos frigoríficos brasileiros, talvez não deva ler o hilário Cozinha confidencial, escrito pelo chef nova-iorquino Anthony Bourdain. A leitura vai desvendar coisas não muito agradáveis sobre o cotidiano das cozinhas de restaurantes. Ou, pensando bem, é bom ler sim e encarar a realidade. Mas dá pra garantir que até mesmo para pessoas de estômago sensível será um jeito saboroso de descobrir os macetes dos grandes (e pequenos) chefes de cozinha.
O livro foi publicado em 2000 e fez a fama de Bourdain, hoje estrela de programas de TV. E tem o exato estilo que se vê nas entrevistas e reality shows de que ele participa. Ácido, mau educado, um ogro que cozinha muito bem. E não tem papas na língua.
Em 376 páginas, editadas no Brasil pela Companhia das Letras, o nova-iorquino relata sua vida de cozinheiro. E confessa que a necessidade de ter algum trocado para comprar drogas, beber e conquistar a mulherada nas temporadas de verão no litoral da costa Leste americana levaram-no a pedir emprego em um restaurante. Norte-americano, filho de pais franceses, já tinha familiaridade com a gastronomia. Mas não pensava, jamais, em seguir carreira na cozinha.
Deixe de lado o glamour dos incontáveis programas de gastronomia que pululam nas TVs pelo mundo afora. E veja que o começo da maioria dos chefes foi mesmo como cumin, o auxiliar do garçom. Ou, pior, no último dos postos de uma cozinha, lavando pratos, recolhendo lixo, lidando com o submundo que gravita em torno de estabelecimentos de repasto, especialmente nas grandes cidades.
Império da informalidade, os restaurantes reúnem uma fauna que inclui imigrantes ilegais, ex-presidiários e pessoas em busca de algum lugar que ofereça trabalho pesado em troca de umas moedas. E comida de graça.
Bourdain faz um raio X completo do funcionamento dos restaurantes. Desde as propinas necessárias para garantir os melhores peixes, carnes, legumes e verduras, até as brigas dentro da cozinha, cenas de sexo explícito no balcão de preparação das comidas e assédio moral de grosso calibre promovido por chefes destemperados.
E, claro, a relação nada amigável com determinados clientes. Descobrimos que a cozinha detesta quem pede pra mudar ingredientes dos pratos do cardápio. Sabe aquele bife beeeem passado? Então. Se você pede carne assim , que vai ficar esturricada e sem gosto, está sujeito a receber pedaços menos nobres, áreas cheias de nervos ou, patinho por alcatra, entendeu? Ah, geralmente o prato do dia é definido pelos ingredientes que estão mais próximos do vencimento. Ou vencidos mesmo. Tudo depende do humor e do caráter dos proprietários, claro. E você aí reclamando de uns trambiques feitos na salsicha nossa de cada dia. Ora, tolinho…
Mas nem só de mazelas vive o livro. Bourdain nos revela como funciona um restaurante. E vai descrevendo tudo, desde a definição dos cardápios, a escolha dos ingredientes, a montagem dos pratos e a espera angustiante pelo primeiro cliente. Também fala da aflição que toma conta da cozinha quando os comensais de uma mesa numerosa pedem pratos diferentes e obrigam a equipe a adotar uma estratégia maluca para que comidas com pontos diferentes de cocção e tempos de preparo diversos cheguem juntinhas no salão.
Já deu pra perceber que vale a pena ler Cozinha confidencial, não é? Anthony Bourdain mostra que cozinhar é acima de tudo uma vocação. Que nem sempre vem do berço. Mas quando bate, vira vício.
Se Bourdain cozinha como escreve, significa que a fama conquistada é justa. A narrativa é fluente, com porções fartas de humor e sarcasmo. A sensação, ao longo da leitura, é de que estamos sentados em uma mesa de restaurante, alta madrugada, depois que o último cliente se foi. Então, o chefe experiente abre um bom vinho. E começa a contar histórias que foi recolhendo desde o primeiro emprego até a consagração como grande cozinheiro.
Depois de Cozinha confidencial você nunca vai mais olhar para um cardápio do mesmo jeito. E vai descobrir que a carne é mesmo fraca.
P.S.: o picadinho com pasteis da foto é de minha lavra. E foi produzido com ingredientes de qualidade comprovada…hehe