Encarei Fabián e o caos, o mais recente romance do cubano Pedro Juan Gutiérrez, dez anos depois de ter lido sua Trilogia suja de Havana. A expectativa era mergulhar em uma história em que o próprio escritor não estivesse envolvido como personagem. E o longo primeiro capítulo do livro cumpriu o esperado. Narrada em terceira pessoa, a parte inicial do romance conta a história de um jovem casal espanhol, no começo do século XX. Sabemos como Lucía e Felipe se conhecem nos anos 1920 em um bairro periférico de Madri. Fazem uma tímida aproximação, até que acabam por se casar. E, por decisão do marido, imigram para Cuba, em busca de fortuna no comércio, seguindo os passos de um tio de Felipe e de milhares de outros espanhóis que partiam para a ilha ávidos pelos dólares dos ricos, e predadores, turistas norte-americanos.
Em Cuba, Felipe ajuda o tio em um armazém. E começa a ganhar seu dinheiro, economizado de forma obsessiva à custa de uma vida extremamente espartana. Lucía cuida da casa. A vida vai se arrastando por duas longas décadas, até que às portas dos anos 1950 nasce Fabián, o personagem que dá nome ao livro. Os primeiros anos da vida do menino se passam em meio à crescente turbulência provocada pela ação de um pequeno, mas organizado, grupo de opositores a um governo ditatorial. Ações de guerrilha pipocam por toda a ilha. E chegamos ao grand finale do governo de Fulgencio Batista, quando Fidel e seus companheiros chegam a Havana e rompem os anos 1960 tomando a ilha para instaurar a revolução popular.
Até aqui, o romance parece fugir do forte tom autobiográfico que Gutiérrez deu aos textos da Trilogia. A impressão é de que não vamos ler sobre suas proezas sexuais, seus arranjos para ganhar a vida em um regime de escassez, disciplina e forte patrulhamento sobre aquelas pessoas que fogem dos padrões revolucionários e patrióticos. Parece.
Terminamos o primeiro capítulo sabendo que o pai de Fabián, avaro, perde todo o dinheiro escondido em uma edícula do amplo sobrado da família e também as economias depositadas em bancos americanos. O dinheiro se vai porque uma reforma monetária tira o valor das antigas notas cubanas e só é permitida a troca de uma pequena parte da fortuna acumulada. Os depósitos do banco, porque são expropriados pelo novo regime.
Deixamos o caos da família de Fabián para mergulhar no segundo capítulo. É quando entra em cena a narrativa em primeira pessoa. É quando entra em cena ele, o caos em pessoa. Pedro Juan.
E o leitor vai descobrindo o elo entre os dois meninos. O bairro em comum na pequena cidade de Matanzas, a poucos quilômetros de Havana. A mesma escola, a mesma classe. Mas estilos diferentes. Pedro, o rebelde, que vai crescendo em meio a lutas corporais, interesse desmedido por sexo, por mulheres. Fabián, tímido, estudante aplicado de piano. Que vai se descobrindo, aterrorizado, homossexual. O terror não pela descoberta, mas por saber que aos olhos do regime castrista é um pária. Têm momentos de convivência, mas só se tornarão próximos de fato muitos anos depois.
A narrativa vai se desenvolvendo na alternância entre a terceira pessoa da história de Fabián e a autoficção de Pedro, que nos conta suas peripécias como quem mede o tamanho do pinto com outros machos na mesa de bar. Nada de muito novo, portanto, no estilo do autor.
Mas isso não quer dizer que o livro é ruim. Pelo contrário. É bom, um pouco mais que bom, talvez, sem ser excelente.
Fiel a seu estilo “escritor pitbull”, que não mede esforços para ser chulo, grosseiro e politicamente incorreto, Gutiérrez oferece a seus leitores o mesmo olhar crítico sobre a situação cubana dos anos 60 e 70, presente na Trilogia. Um misto de reconhecimento das mudanças que a revolução trouxe, com a falta absoluta de liberdade e diversidade, valores que são soterrados sob o discurso moralista e persecutório do regime, que de revolucionário e socialista vai se transformando em uma ditadura com um frágil verniz de comunismo.
Como pano de fundo para os dramas pessoais dos dois rapazes, assistimos ao passar do tempo em uma ilha tomada pelo terror da guerra fria, da iminência do desastre atômico, do bloqueio econômico perverso que gera escassez. E como contraponto, a fuga da realidade pelo rum, pelo sexo e pela música. A alegria na pobreza. Mas com alguma dignidade.
Pedro Juan Gutiérrez conseguiu sobreviver em Cuba. Fez de tudo, até se tornar jornalista, pintor e escritor. Consegue ser uma voz relativamente crítica sem sair pelo mundo espalhando rancor. Consegue entender o caos em que vive desde que nasceu, ainda sob o regime de Batista, e cresceu, sob Fidel, mantendo bom relacionamento com pessoas próximas aos irmãos Castro, como o cantor Pablo Milanés, a quem dedica agradecimentos no livro.
O destino de Fabián é mais complicado. Retirado à força do conservatório, onde fora admitido como aluno promissor de piano, vai para uma fábrica de processamento de carne de porco e, depois, consegue se juntar a uma trupe para tocar em hotéis visitados por turistas. Fabián vai mergulhando no seu caos particular. Faria um baita spoiler se contasse aqui como isso evolui. Portanto, a dica é encarar o romance, que chegou ao Brasil em edição caprichada e vistosa da Alfaguara e ótima tradução da dupla Paulina Whacht e Ari Roitman, que encarou bem todas as referências culturais e, especialmente, gírias e palavrões que saltam aos borbotões da escrita de Pedro Juan.
Divirtam-se.
P.S.: a obra da foto em destaque é de Ana Maria Tavares, fotografada na recente exposição da artista na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Vim ao blog procurar uma dica de livro e eis que encontro uma resenha sobre Pedro Juan Gutierrez. Fiquei feliz que só! Um beijo!!!
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Manda ver. Conte o que achou depois de ler. Beijos….
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