Que mulher nunca foi chamada de louca ou histérica? Essa é uma das formas de expressão mais sistemáticas de machismo e misoginia na história da humanidade, uma que levou muitas de nós à fogueira na Idade Média e durante a Inquisição. Ainda hoje, os epítetos surgem sempre que alguém julga necessário deslegitimar os atos ou os pensamentos de alguém do sexo feminino. E se queimar pessoas em praça pública caiu em desuso, ao menos no ocidente, simplesmente debater parece ser uma perda de tempo quando se pode atacar a sanidade mental e, portanto, o lugar no mundo de uma mulher.
Os 22 contos reunidos por Nara Vidal em A loucura dos outros (editora Reformatório) nos apresentam mulheres em intenso embate interior, sempre sob a pressão do que se convenciona esperar como comportamentos aceitáveis socialmente. O casamento, a fidelidade, a castidade e a maternidade são as pedras de toque contra as quais se batem as personagens; em alguns casos, essa pressão as levará a pequenos atos de rebeldia ou mesmo a atitudes extremas.
Todos os contos levam o nome de suas personagens principais, mulheres comuns na maioria dos casos. Mas Nara Vidal escolheu abrir e fechar seu livro com dois contos fabulares: o primeiro, Ifigênia, é extremamente imagético e nos apresenta o clássico caso da mulher que enlouquece de amor – nesta história, por um palhaço de circo.
Aqui, as expressões populares associadas às paixões desmedidas são levadas ao pé da letra: a atiradora de facas é “apaixonada, portanto cega”. Já Ifigênia literalmente perde a cabeça quando abandonada e, presa pelo pai em um porão, suspende-a com as mãos para poder olhar a rua por uma pequena janela. O conto também expõe o ridículo do poder patriarcal: o pai sente-se humilhado porque esperava da filha, no mínimo, que se envolvesse com o mágico.
As personagens comuns sofrem também de dramas comuns; no entanto, é delas a voz narrativa, e conhecemos os pensamentos complexos que estão por trás de cada situação. Amanda apanha do marido, mas tenta desculpá-lo, atribuindo a si o ônus pela irritação de seu companheiro. Assim, segue na esperança de conquistar sua atenção, bastando “esperar minha vez no intervalo do Jornal Nacional”.
A maternidade, claro, é um dos temas centrais do livro. Nesse ponto, ele guarda alguma relação com A teta racional, de Giovana Madalosso (já resenhado aqui), mas vai um pouco além. Enquanto Giovana busca apresentar a experiência da maternidade real, e não idealizada, as personagens de Nara Vidal têm mesmo aversão pela condição de mãe – mesmo quando já têm filhos. Flávia “foi mãe porque teve medo de envelhecer sozinha”, mas questiona-se “como foi parar ali naquela maternidade”. Maria Dulce tem um filho para contentar o marido mas, presa numa vida que não queria levar, acaba por cometer um ato extremo. E Sílvia tenta flertar com desconhecidos no metrô, enquanto desdenha de tudo e todos, inclusive do próprio casamento:
Condição miserável é a de ser mãe. Santificamo-nos e passamos a ser uma espécie de porto seguro. Nosso maridos já não nos desejam, já nos conhecem sem segredos. O sexo é uma coreografia tão ensaiada que qualquer improviso poderia acarretar um ataque cardíaco. Os filhos arruínam nosso corpo, sugam nossa vontade de viver, nos envelhecem num tempo galopante.
Também aparece com alguma frequência a angústia da invisibilidade, perante os próprios companheiros ou o mundo em geral. Mais de uma vez, a autora constrói uma dualidade com o espelho – em certo ponto, essas mulheres já estão tão fragilizadas que passam a não enxergar a si próprias. Em alguns casos, essa invisibilidade passa também a ser uma conveniência para quem cansou e deseja apenas o isolamento.
Num raro caso de otimismo no livro, o conto Ana começa como uma típica história de afastamento de um casal, mas finda na celebração de liberdade, igualdade e cumplicidade entre companheiros.
Quase todas as personagens de A loucura dos outros poderiam ter sua sanidade mental questionada, se tomássemos como parâmetro o julgamento comum. Mas o título dos livro nos coloca em outra pista: a loucura está sobretudo numa estrutura social que tenta de variadas formas exercer controle sobre a mente e o corpo femininos.
PS: A imagem em destaque é de uma obra fotografada durante uma das edições da SP Arte. Infelizmente, dessa vez não fotografei a etiqueta para identificar o (ou a) artista. 😦
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