As águas turbulentas de Clarice

“Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo”.

A frase é realmente de Clarice Lispector (veja aqui post de Renata sobre frases que Clarice realmente escreveu). Está no pequeno romance – um quase não romance – Água viva, de 1973. O nome não é um acaso. Remete diretamente ao animal marinho, que muitos também conhecem como caravela. Um ser ao mesmo tempo belo e perigoso. Que queima a pele e pode deixar marcas indeléveis.

Pois Água viva queima. Fere. Por dentro.

A narrativa não tem um fio condutor. Estamos diante de um texto no qual a narradora se dirige a um homem. “Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra (…) Quero como poder pegar com a mão a palavra”, diz a seu interlocutor essa mulher sem nome.

O texto de Clarice, embora curto, tem uma intensidade que faz com que ao final da leitura tenhamos a sensação de que foram centenas e centenas de páginas de um desabafo que se dá em torno de temas como a solidão, a tormenta com uma humanidade imperfeita, que faz da narradora uma mulher que traz para seu interior os problemas do mundo. E isso a consome, devora, queima, como a água viva do título.

Para quem ainda não leu Clarice, ou leu pouco, Água viva pode ser encarado como uma síntese da linguagem da escritora. Em primeira pessoa, uma narrativa intimista, uma prosa que é carregada de poesia. Não à toa, de seus livros as pessoas conseguem extrair inúmeras frases que acabam circulando pela internet fora de contexto ou deturpadas a ponto de apenas parecer Clarice. E este romance não é uma exceção. Você vai lendo e sublinhando frases marcantes. Portanto, a dica é ter um lápis à mão.

Muito se pode dizer sobre o livro. A questão feminina, a linguagem cortante, o recado dramático, por vezes desesperado, ao homem a quem a estranha carta se dirige. Mas duas passagens me marcaram profundamente.

Na primeira a narradora faz uma belíssima descrição de flores.

“Rosa é uma flor feminina…”

“Já o cravo tem uma agressividade que vem de uma certa irritação…”

“O girassol é o grande filho do sol (…) Será um girassol flor feminina ou masculina. Acho que masculina”

“A violeta é introvertida e sua introspecção é profunda…”

“A sempre-viva é sempre morta.”

“A formosa orquídea é exquise e antipática (…) Adoro orquídeas. Já nascem artificiais, já nascem arte.”

“Tulipa só é tulipa na Holanda.”

“Mas angélica é perigosa. Tem perfume de capela.”

E por aí segue, dando às flores características humanas, em breves textos que poderiam ser publicados à parte, como um livro de poesia #ficaadica

O segundo momento marcante da leitura foi encontrar um trecho do livro que virou música, em uma parceria póstuma de Clarice com Cazuza e Frejat. E ganhou a voz de Cássia Eller, em seu disco de estreia, como a mais perfeita intérprete de tanta angústia, com o nome Que o deus venha. Clique aqui para ouvir e acompanhe o texto abaixo:

“Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei – assim como se come e se vive o gosto da comida…”

Clarice é sempre um soco no estômago, uma água viva que percorre a gente por dentro, queimando, deixando marcas. E as frases de Clarice, a verdadeiras, grudam no leitor, como as marcas que o animal marinho deixa em quem ele tem contato.

Leia Clarice. Releia Clarice. A obra completa, atualmente, é edita pela Rocco.

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