O pernambucano Raimundo Carrero vem sendo o mentor de dezenas de escritores brasileiros contemporâneos. Nas oficinas de escrita que promove há algumas décadas, ele ajuda iniciantes a aprimorar seus processos de criação e as técnicas narrativas. Das suas aulas, surgiu pela primeira vez em 2005 o livro Os segredos da ficção, que rapidamente se esgotou, adquirindo uma aura meio cult (para se ter uma ideia, meses atrás busquei pelo livro na Estante Virtual e achei um único exemplar por mais de R$ 200).
Pois de tanto ouvir os apelos dos seus alunos e admiradores, Carrero relançou por conta própria uma nova edição do seu guia da arte de escrever, um volume com 312 páginas em que destrincha trechos de romances icônicos, brasileiros e estrangeiros, para jogar luz sobre as técnicas por trás das palavras impressas. Uma única frase de Juan Rulfo em Pedro Páramo, por exemplo, é vista e revista dezenas de vezes, para evidenciar todas as nuances concentradas pelo escritor em um punhado de palavras. Porém, não espere que esse livro funcione como um manual comum. Carrero não dá respostas fáceis nem caminhos certos – só instiga às descobertas próprias de cada aspirante a escritor.
Por isso, a leitura chega a ser até meio doída. O autor deixa claro que não acredita em inspiração, mas em muito trabalho, baseado em conhecimento técnico. Parte de um exemplo de enredo curto e absolutamente banal para evidenciar todas as decisões que precisam ser feitas até um rascunho de fato se conformar em uma história de ficção. Alerta o tempo inteiro que o caminho é sofrido – que todo o esforço parecerá inútil, que os primeiros resultados serão pífios, que muito papel será jogado no lixo antes de uma ideia virar um texto que mereça ser publicado.
Mas longe de ser desestimulante, essa postura indica a crença de que qualquer pessoa está talhada para escrever, desde que destine o tempo e a dedicação necessárias a cometer milhares de erros até chegar aos primeiros acertos. Para Carrero, não há inspiração, há trabalho. E há leituras prévias, referências, ideias anotadas que ou não de que o autor pode lançar mão, consciente ou inconscientemente, quando vai escrever sua própria obra. “Nada é tão espontâneo que não exija esforço concentrado. Nenhuma grande obra nasce do acaso”, escreve, logo na introdução, ideia que retorna com frequência ao longo do texto:
A descoberta da voz narrativa impressiona e inquieta. Um processo doloroso, embora saudável. Em geral, ela não parece com nada, com ninguém, estúpida. Não segue os métodos de narração convencional. Não é descrição. Não é redação. Não é nada. Não importa. Isso mesmo: não importa. As palavras batem umas nas outras, fazem barulho, confundem.
Percebe-se depois, e com paciência que conduz à luz: ali está nascendo um escritor.
Carrero centra-se principalmente sobre a voz narrativa, a pulsação narrativa e a construção do personagem. São esses três itens do processo criativo que vão permear todo o livro, mesmo quando ele aborda outros temas, como técnica, intuição e desenvolvimento do enredo. Além de Juan Rulfo, ele analisa trechos de Ernest Hemingway, Ismail Kadaré, Lygia Fagundes Teles, Gustave Flaubert, Machado de Assis, Jack Kerouak, Tolstoi e vários outros escritores clássicos e modernos, incluindo algumas de suas próprias obras, em busca de exemplos de como é possível construir uma multiplicidade de vozes e olhares – e portanto, de entendimentos – com o manejo consciente da escrita. Carrero, advoga, inclusive, que os erros gramaticais podem e devem ser manipulados em favor do processo criativo.
Mesmo a construção desse livro que se propõe a ser um manual é um exemplo de como a criação deve estar destituída de amarras. Não há uma lógica linear na sucessão de temas que vão sendo tratados ao longo do livro; eles vão e voltam, assim como os exemplos, à medida em que as explicações vão ficando mais complexas e multifacetadas. Portanto, sugiro que não tente usar o livro como um guia de consultas rápidas – está bem longe disso. Leia inteiro, do começo ao fim, e retorne aos trechos que considerar cruciais sempre que precisar.
Depois de ler Os segredos da ficção, as experiências de leitura seguintes foram inevitavelmente diferentes: a sensação foi muito semelhante à de olhar o mundo depois de começar a fotografar a sério. Em ambos os casos, está tudo lá como sempre esteve: a luz, os objetos, o mundo e as palavras. Mas a visão se transfigura num quase raio-X, e passamos a ficar mais atentos ao que está por trás da matéria concreta. Como diria um grande amigo, quando começamos a fotografar – ganhamos olhos de vampiros.
PS: O livro ainda não está disponível em nenhuma grande livraria. Por enquanto, se tiver interesse, sugiro que entre em contato com o próprio Carrero via Facebook. Clique para ver o perfil dele.
Caraca, não sabia que ele tinha feito outra impressão dos segredos da ficção. Um amigo encontrou numa livraria em Limoeiro e presenteou a um outro amigo. Vou avisar para eles que o Carrero reimprimiu o livro 🙂 Post massa e tudo o mais 🙂
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Fez sim, Jorge, mas com edição própria e distribuição um pouco limitada. Se tiver dificuldade em comprar, me avisa que te ajudo.
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auee! que massa 🙂 valeu ae pow 🙂 quererei sim! 🙂 e desde já agradeço a postagem informando, agradeço a disposição em ajudar e tudo o mais (isso tá parecendo aquela propaganda do gomes da costa huahuahua https://www.youtube.com/watch?v=2-v7Uwz-ja4)
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Gostaria muito de adquiri este livro, como faço.
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Entra em contato com ele! Ainda deve ter exemplares da nova edição: https://www.facebook.com/raimundo.carrero.1
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