O livro da ausência

Comprei Qué vergüenza, de Paulina Flores, na perigosa visita que fiz à livraria El Ateneo, de Buenos Aires, nas férias de julho. Perigosa, porque aquele templo de perdições tem livros que dificilmente chegarão ao mercado editorial brasileiro, que infelizmente tem pouquíssimo interesse pelos autores latino-americanos que não venham com o carimbo de prêmios ou a benção da crítica internacional, como já escrevi nest post. Entrei na livraria com duas missões. A primeira e mais difícil era não vender um rim para comprar os livros. Até que me contive, com apenas seis aquisições. A segunda missão era comprar mais livros escritos por mulheres do que por homens. E essa missão foi cumprida com sucesso, pois foram cinco livros de mulheres e apenas uma solitário exemplar de livro escrito por homem.

2017-08-13 15.19.50Entre as cinco autoras, apenas uma não é argentina. Trata-se justamente da chilena Paulina Flores, cujo livro de contos marcou sua estreia no mercado editorial. Apostei na referência de ter ganho o prêmio Roberto Bolaño pelo conto que dá nome ao livro. E pela dica do vendedor da El Ateneo, que garantiu tratar-se de boa literatura. E deu match!

Os contos que formam Qué vergüenza têm uma poderosa narrativa escrita a partir de um olhar muito específico sobre a vida da baixa classe média chilena. São nove histórias, distintas, com  narradores em primeira ou terceira pessoa e nenhuma conexão entre si. Mas existem vários traços comuns. O primeiro deles é a contemporaneidade. Fenômenos da atualidade aparecem nas narrativas. As personagens usam o Facebook, postam no Instagram, assistem ao Netflix, citam frases de Downton Abbey ou Harry Potter e músicas das bandas de sucesso no Chile. Pelo menos em sua primeira obra, Paulina Flores, uma jovem nascida em 1988 (!!!!) mostra ser uma autora conectada com seu tempo.

A vida nos pequenos “blocks”, apartamentos de conjuntos habitacionais periféricos das cidades chilenas, nos subúrbios de Santiago ou nos bairros operários de outras localidades também aparece com frequência nos contos. São famílias que lutam pela sobrevivência, pessoas desempregadas ou em subempregos, jovens que encaram a falta de perspectiva no mercado de trabalho e na vida, mulheres e homens solitários, relações conjugais em que afeto e cumplicidade não existem. A melancolia perpassa a narrativa de Flores. E também o horror, como no conto chamdo Laika, uma história habilmente carregada de lirismo que tem a pedofilia como pano de fundo, transportando o leitor do encantamento à repulsa.

Terminei a leitura de Qué vergüenza em pleno dia dos pais. E, ao fechar o livro e revisar as anotações que fiz em cada um dos contos saltou aos olhos a mais marcante das características comuns a todas as narrativas. A figura do pai é citada em todos os contos, seja como tema principal ou como referência passageira, em histórias de ausência e de fracasso. Do homem desempregado que usa os filhos bonitos e fofos como uma espécie de vitrine para tentar procurar empregos, no conto que dá nome ao livro, às mulheres que lembram de passados de abandono e omissão de pais que eram meros zumbis dentro de casa ou que simplesmente desapareceram de suas vidas sem qualquer explicação. Não se trata de um exercício de demonização da paternidade. Mas de uma leitura crítica, ácida e certeira sobre uma das mais infelizes características do machismo, que é a fuga da responsabilidade de criação dos filhos. Quantas histórias de omissão e abandono cada um de nós não conhece? Essa é a matéria prima que alimenta os relatos de Paulina Flores e dá o tom melancólico, mas não deprê, a esse livro que revela uma talentosa escritora.

A edição que comprei é da coleção “Biblioteca Breve”, da editora Seix Barral, de origem espanhola, com filial na Argentina. Em casa, temos vários livros dessa coleção, especialmente os de Enrique Vila-Matas, publicados em Barcelona. O que chamou a atenção é a diferença de qualidade. As capas argentinas são feias, quase bregas, o papel de uma gramatura muito baixa, mas com boa impressão. O preço foi bom. E pelo que pesquisei, dá para comprar pela Amazon.

Para saber mais sobre a autora, sugiro esta ótima matéria do portal El Español. 

 

 

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