A triologia infernal de Micheliny Verunschk

Sempre acho complicado escrever sobre obras seriadas enquanto elas ainda estão em andamento, pois é como se estivesse me arriscando a uma opinião antes da hora. Vou abrir uma exceção para a Trilogia infernal de Micheliny Verunschk por um motivo simples: os dois primeiros livros da série têm histórias interligadas (óbvio), mas guardam muita independência entre um e outro. Sendo assim, não há nenhuma pista sobre o caminho que encontraremos no terceiro e último volume dessa história que, como todo o trabalho de Micheliny, é bem difícil de classificar.

IMG_0549Publicados pela Editora Patuá, Aqui, no coração do inferno O peso no coração de um homem têm um quê de novela policial e faroeste, inclusive na arte das capas assinada por Leonardo Mathias (trabalho incrível, aliás). No primeiro volume , a narradora é uma adolescente que mora com o pai, a madrasta e duas irmãs em uma cidade pequena demais pra quem já havia vivido em uma metrópole. A garota se sente sufocada pela falta de anonimato pela vigilância do velho, um delegado de polícia que ela chama ironicamente de xerife.

A história começa quando o delegado leva pra dentro de casa um rapaz menor de idade acusado de assassinato. Por receio de que ele seja linchado pela população, ele acha melhor tê-lo sob suas vistas até que chegue o transporte para uma unidade da Febem em uma cidade maior. O garoto então é algemado a uma coluna no meio da cozinha. O que deveria durar apenas um dia se estende por vários, e narradora então começa a ficar obsecada pela história do garoto. Porque ele está preso, afinal? Diz-se que ele matou várias pessoas, mas como? Qual o motivo?

Essas perguntas não são respondidas de pronto, e a narrativa de Micheliny centra-se na relação da garota com essa cidade sufocante e a seu pai, a quem ela se percebe tão amarrada quanto o garoto na pilastra da cozinha. Namoricos e incursões sexuais são quase impossíveis ante os olhares atentos de todos. Enquanto sua irmã mais velha prefere o embate direto, a narradora observa o seu entorno e a sua família com olhar sarcástico de quem assiste a um teatro bizarro, eivado de estereótipos e preconceitos, sobretudo com relação à autoridade policial e patriarcal, exercida na cidade pelo xerife. É claro, essa observação é também um comentário sobre a sociedade brasileira emboscada entre o medo e o impasse sobre as políticas de segurança pública.

A delegacia é uma casinha mal-arranjada. Imagine que o teto é de telhas e que, quando chove, os soldados têm que colocar baldes para aparar a água da chuva que pinga entre as frestas. Tem muita coisa engraçada em viver num lugar assim, a polícia espalhando baldes, panelas e bacias para prender as goteiras é uma delas. Prender o que não se prende, a chuva. Controlar o que não se controla. É para isso que a gente precisa de polícia, afinal, né?, para que as pessoas se sintam seguras mesmo que tudo ao redor desminta essa narrativa, porque é impossível aparar a chuva com tantas telhas quebradas, afastadas, com tantos vãos que dão brecha pro irreprimível, com o vento que, para todo o sempre, torna a quebrar e afastar as telhas que o servente insiste em recolocar no lugar.   

Essa cidade pequena, que ela chama de o coração do inferno, é o Brasil. E o papel que seu pai exerce nesse arranjo social é um mistério que ela vai desvendando enquanto percorre às escondidas os documentos trancados em seu escritório. Entre inquéritos de assassinato com fotos sangrentas, que ela lê como se estivesse montando um romance em quebra-cabeças, ela encontra RGs antigos, inclusive o de sua mãe, morta anos antes em circunstâncias pouco esclarecidas.

Aqui, há uma sutil e interessante indicação de como os documentos, por mais frios que seja, contam histórias de pessoas. Quando elas se vão, os papéis são a prova de que alguma vez existiram – e é a essa certeza que a personagem se aferra quando decide mergulhar nesses documentos para entender a história de sua mãe e, sobretudo, de seu pai, que parecem se misturar também ao passado sombrio do Brasil. Tal como um folhetim, Aqui no coração do inferno termina num plot twist, que deixa tudo em suspenso para O peso num coração de um homem. 

IMG_0547A segunda novela da triologia infernal aprofunda a história do garoto assassino, ela própria também eivada de violência desde a infância. Aqui, a voz narrativa muda radicalmente, fica mais introspectiva e menos insolente – de alguma forma, acompanhando a aquisição da linguagem pelo personagem. Neste livro, é o poder oligárquico que sobressai: o foco narrativo muda da pequena cidade para uma família que vive isolada em uma fazenda, dominando tudo e todos ao seu redor. Diferente da garota que observa atentamente o mundo social, o garoto deste livro vai descobrindo a si próprio em meio a um outro tipo de dominação, que ele absorve e devolve ao mundo transmutada.

Neste livro, a história do garoto vai até antes a sua prisão na casa da primeira narradora. Ela volta ao final do segundo volume, já na idade adulta, mas quedamos sem qualquer pista de para onde Micheliny nos levará no terceiro livro da série.

O seu trabalho, aliás, é incrivelmente versátil. Micheliny já escrevia poesia quando ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura como romancista estreante por Nossa Teresa, Vida e Morte de uma santa suicida, também editado pela Patuá. A trilogia infernal é só o seu segundo trabalho em prosa e, embora  assuma vozes narrativas completamente diferentes, os três livros têm em comum o ambiente de cidades pequenas, que têm suas contradições sociais e hipocrisia amplificadas pelo olhar sarcástico da autora (a saber, Micheliny é de Arcoverde, cidade nem tão pequena assim, que fica no limiar entre o Agreste e o Sertão de Pernambuco).

Dela também recomendo o excelente livro de poesias B de Bruxa (Mariposa Cartonera), desses pra ler e reler de quando em sempre.

Quanto à terceira e última parte da Trilogia infernal, aguardaremos ansiosamente, relendo trechos dos dois primeiros livros para não perder nenhuma possível conexão nesse delicioso xadrez literário.

PS: a Patuá é uma editora independente, cujo dono, Eduardo Lacerda, faz sozinho as vezes de diretor, editor, estagiário, despachante, faxineiro, etc. O notável trabalho de curadoria que ele realiza vem garantindo prêmios importantes todos os anos – além do Prêmio São Paulo de Literatura, vários autores da casa também levaram o Jabuti. Vale muito a pena conhecer o seu catálogo e comprar direto na editora, pelo site www.editorapatua.com.br – até porque, é difícil achar os títulos nas grandes livrarias.

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