Já vi ou ouvi alguns escritores falando sobre o ato de escrever como uma tentativa de sobreviver, de ordenar o caos por meio da linguagem, de construir em palavras um mundo reconhecível. Ou de criar o caos deliberadamente, desordenar o mundo para que, justamente assim, ele ganhe um novo significado. Em todo caso, quem coloca a escrita nesse patamar ressalta seu poder como veículo de expressão de uma verdade interior que precisa vir à tona, e encontra pra isso o instrumento da palavra. O poema que abre Maravilhas banais, livro mais recente de Michelinhy Verunschk, dá justamente esse papel à escrita:
“| escrever | escrever como quem constrói o próprio chão no qual se pisa | árvores de um lado | gavetas do outro | a luminescência de alguns peixes e as grandes mariposas da memória | escrever | escrever | escrever como quem desenha a pena e tinta uma rota de fuga | uma rota de navegação \ a trajetória de um planeta desconhecido |”
Além das estrofes dividas pelo sinal |, o texto vem entre ) e (, detalhe nada desprezível. O lugar que a escrita na vida da autora é marcado como central; não um parênteses, não um aparte, mas a essência. Que esse poema esteja na abertura do livro também é significativo: ele funciona como um portão; para ler as poesias de Maravilhas banais, é preciso primeiro passar pelo entendimento de onde elas vêm e o que significam para quem as escreveu.
O que vem depois são poemas divididos em duas seções e outros tantos avulsos. Todos têm em comum o amor como tema central – mas não meramente o amor idealizado (embora um pouco). No prefácio, Nina Rizzi faz uma síntese interessante do livro: “dançar com o amor, ter prazer, transtorna os lugares da cultura, mobilizando os territórios, sentidos e linguagens do visível e do sensível. a dança-deslocamento rompe muros e, enfim, nos re-torna ao que mais amamos em nós mesmos e nos mantém vivos e jamais mornos: a paixão, o amor”.
Nos poemas da seção “do amor e seu osso”, o sentimento é físico e está no corpo como um rim ou um músculo, o que norteia a bela capa de Lucas Mariano para a editora Martelo. O vocabulário foi escolhido para situar essa corporeidade; assim, os textos estão plenos de epiderme, metatarso, falanges, úmeros, nervos, ligamentos, escápulas, tíbias, fêmures… Pensando agora enquanto escrevo, é curioso que não sejam citados órgãos vitais – o óbvio coração, por exemplo. Mas “não há metafísica no amor”, afirma um dos poemas; portanto, tudo nele é sólido, estrutural e, de alguma forma, pragmático como um esqueleto .
Sob o título “outros cânticos”, a sessão seguinte faz uma alusão potente ao Cântico dos cânticos, livro bíblico que celebra o amor sexual, e se aproxima de outro livro de poemas de Micheliny, B de bruxa, na alusão à sororidade. No conjunto de poemas de “outros cânticos”, todos os primeiros versos são um chamado da narradora às “mulheres de Jerusalém”, a quem pede ajuda para encontrar o seu amado. Não sabemos para onde ele foi nem porque demora a voltar, mas assistimos a narradora contar para as suas iguais como é esse amor, em versos de muita sensualidade:
(…)
[o meu amado
passou sua mão
pela fresta da porta
meu coração
entre seus dedos
estremeceu
(…)
O amor como dueto é outra característica dos poemas de Maravilhas banais. Se em x o sentimento é um jogo de xadrez (“esse movimento / essa guerra / essa dança”), em relevo, o amado é “o espelho em que me deito”. Esse outro é sempre um reflexo da narradora; alguém em quem ela se vê e nisso realiza o seu amor.
Entre os meus preferidos, destaco também o onírico um banho, em que a narradora lembra a sensação de estar sob a água de quando era uma sereia, e viajava pelos mares com suas irmãs – especialmente tocante para litorâneas que, como eu, vivem em desterro nesse Planalto de Piratininga.
Micheliny Verunschk já publica poesia há muitos muito anos, mas essa produção ficou um pouco ofuscada depois de ela ganhar o Prêmio São Paulo de Literatura de 2013 com seu romance de estreia Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (já resenhado aqui). Tanto eu como Carlos acompanhamos atentamente o desenvolvimento da Trilogia Infernal, que até agora teve dois livros publicados: Aqui, no coração do inferno e O peso no coração de um homem, ambos pela Editora Patuá (veja a resenha aqui).
Mas Maravilhas banais se junta a B de bruxa, publicado pela Mariposa Cartonera, aos preferidos de todos os tempos – um estímulo para caçar os livros mais antigos da autora.
PS: a foto em destaque desse post é de uma obra fotografada no Museu da Diversidade Sexual, que fica na estação República do Metrô de São Paulo. Infelizmente, não achei o registro do nome do artista.
Excelente artigo! Tendo a escrita em mim tanto como caos como sanidade, adorei ler.
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