Volta e meia o Lombada volta aos clássicos. Seja em releituras ou nas incursões inéditas em obras ou autores que não lemos. É também uma forma de jogar luzes sobre os contemporâneos, identificar influências e reconhecer vestígios que aparecem em romances, contos e poemas da atualidade. Ao ler obras-primas do passado percebemos que muitas delas atravessam os anos mantendo-se vigorosas, mesmo que em alguns casos possam estar datadas no vocabulário ou nas referências de época. Por isso, aqui no blog vocês vão encontrar Machado, Graciliano, Rosa, Ariano, Clarice, Kafka, Woolf, Canetti, Calvino, Cortázar, Mann, entre tantos outros, entremeados com nossas escritoras e escritores preferidos dos dias de hoje.
E foi uma leitura contemporânea e recentíssima que me levou a ter interesse por A educação sentimental, de Gustave Flaubert. No final de 2017 devorei as páginas de A noite da espera, de Milton Hatoum, que resenhei aqui. E eis que A educação apareceu com força nas conversas do personagem principal com sua namorada e seus amigos de um grupo de teatro que atuava em plena ditadura militar, na obscura Brasília tomada por milicos de todas as patentes. Baixei no Kindle a edição fresquinha da Penguin, com excelente prefácio da psicanalista Maria Rita Kehl e um posfácio que em si é também um clássico, lavrado no princípio do século XX por ninguém menos do que Marcel Proust.
A ideia era ler mais pra frente. Mas a curiosidade foi grande e comecei a leitura logo em seguida ao romance de Hatoum.
De Flaubert já tinha lido Madame Bovary. E havia gostado, embora não tivesse entrado para o rol dos meus livros preferidos para todo o sempre. É um clássico, uma referência da qual derivou até o adjetivo Bovarismo, como nos explica Maria Rita no prefácio, que define pessoas que autoprojetam uma personalidade que não corresponde com sua realidade, embora ela considere essa definição, cunhada pelo psicanalista francês Jules de Gautier em 1912, um tanto limitada.
Mas vamos ao que nos interessa. A Educação sentimental foi publicado em 1869, quando Flaubert já havia sido processado por ofender a moral pública com seu romance sobre Emma Bovary. Livre do processo, o escritor gozava novamente de prestígio e seu novo romance estava cercado de expectativas. No entanto, foi mal recebido pela crítica e deu início a uma longa fase de decadência que duraria até sua morte, mais de uma década depois.
A história é de Frédéric Moreau, um jovem nascido em uma província à beira do rio Sena. Moreau nasceu em uma família que tem traços de aristocracia, algumas posses e uma forte possibilidade de herdar a fortuna de um tio distante, algo como ganhar a Mega Sena da Virada daqueles tempos. Já em sua juventude sonha com Paris, cidade que vive períodos de grande turbulência política entre queda de imperador, ascensão de uma frágil república e reviravolta napoleônica, literalmente. A cidade já é frenética, onde circula o “grand monde” e lugar que emana tendências da moda, das artes e do pensamento fervilhante daqueles tempos.
Moreau é aquilo que hoje poderíamos definir com um playboy rentista. Nada produz, vive de rendas familiares, nada estuda, embora alimente sempre grandes e inúteis projetos. Em sua boa vida na capital, ainda com recursos limitados da pequena mesada de sua mãe, vai se embrenhando nas altas camadas da então assustada aristocracia graças aos contatos herdados de seus antepassados da província, entre os quais alguns condes e barões. É assim que se aproxima de um esperto negociante de arte, Sr. Arnoux. E cai em perdida paixão por sua mulher. E esta passa ser a razão de todos os seus atos, com sentimentos que ele mantém represados – embora seus amigos percebam – , vivendo uma tormentosa relação platônica. A sorte grande chega para Frédéric e a fortuna do tio finalmente morto lhe chega, o que lhe permite passar a viver em um palacete, torrando sua renda em obras de arte, roupas caras e saraus, tudo para se mostrar exuberante e rico para a Sra. Arnoux. Esse é o fio da história e, acreditem, o centro da narrativa é uma sucessão de não acontecimentos, tal qual a desinteressante cabecinha de Moreau. Mas não é a melosa história de amor que efetivamente chama a atenção. E nem sequer a tal educação sentimental, um título bastante prosaico para uma obra que tem pelo menos cinco grandes temas que fazem do romance um clássico a ser lido.
Política
A história se passa no conturbado momento em que o rei Luis Felipe é destronado e tem início a Segunda República francesa. Um período curto, de grande agitação, crise econômica e reação da aristocracia ao governo parlamentar que se instala. Um dos napoleões, sobrinho do original, articula um golpe. E eis que nosso amigo Frédéric, imbuído de grandes sentimentos inoculados por seus amigos intelectuais se envolve nas agitações de rua, circulando entre barricadas, estando no centro dos acontecimentos, sem no entanto saber de que lado realmente se posiciona. Flaubert, um conservador confesso, mostra seus alinhamentos político nas observações sarcásticas acerca dos hábitos brutos dos republicanos, mas faz um relato impressionante do clima nas ruas, palácios, alcovas e tabernas daquelas décadas agitadas.
Ideias em ebulição
Nesse ambiente de grandes embates, também aparecem os grandes debates. Nos acalorados encontros de Frédéric com os amigos intelectuais surgem as ideias então ainda frescas de pensadores como Saint-Simon, Comte, Renan, Lachelier, Cousin. Ideias libertárias entram em choque no livro com o pensamento conservador. Flaubert coloca em sua obra autores contemporâneos, alguns dos quais ficaram marcados para a posteridade e outros de quem nem Mr. Google dá conta de achar. Mas o fundamental é que o romance mostra toda a agitação intelectual que fazia de Paris um caldeirão sempre prestes a explodir.
Dandismo
Frédéric Moreau é sobretudo um dândi que vive em meio a dezenas de outros. Pertence a uma estirpe para a qual o trabalho regular, com horários, obrigações, suor ou esforço mental obrigatório é um horror. O vestuário desse período é repleto de acessórios, brilhos e detalhes que revelam futilidade. Os salões do “grand monde” parisiense são palco de um teatro de relações hipócritas, superficiais e fortemente contaminadas pela nobiliarquia do império recém derrubado. O que vemos é uma elite que já acreditava ter superado os horrores da revolução de 1789. Horrores para eles, é claro, que foram os alvos preferencias das afiadas guilhotinas da turma de Robespierre. E mal sabiam eles que ainda estava por vir a Comuna de Paris 🙂 .
Homoafetividade à flor da pele
Além da paixão platônica e um tanto assexuada pela Sra. Arnoux, salta aos olhos a relação de Frédéric com Deslauriers, seu amigo de infância com quem tem idas e vindas de brigas e reconciliações e até ajudas financeiras. Os amigos andam de mãos dadas pelos bulevares, passam longas horas em casa, trocando confidências e carinhos. Fica tudo velado, mas com evidentes sinais de que a relação de ambos vai além da amizade.
Paris e os flâneurs
A cidade é protagonista também. Frédéric é um típico flâneur e suas andanças por Paris são descritas com detalhes por Flaubert. Nomes de ruas, que aliás permanecem os mesmos até hoje, quase dois séculos depois, descrição de prédios, o Bois de Boulogne, o Champ de Mars e uma série de ícones da cidade que ainda não tinha torre, aparecem com frequência. O Louvre, as portas de entrada da cidade, teatros, bares e cafés são pontos fundamentais para os encontros e desencontros de Moreau. A cena do enterro do Sr. Arnoux (não é um spoiler), cujo féretro desfila pelas margens do Sena, passa pelas elegantes ruas dos Champs-Élysées até chegar ao Père Lachaise, que já era o cemitério dos ricos e bem morridos.
Esses temas, que permeiam a narrativa, tornam o romance uma leitura fascinante. Na edição que li, chama atenção também o texto final de Marcel Proust, publicado em janeiro de 1920. Um aspecto que eu não conhecia sobre Flaubert é a polêmica em torno da qualidade literária de sua obra. Muitos críticos o tratavam como um autor que escrevia mal. Quarenta anos depois de sua morte é Proust quem vai colocar Flaubert no elevado status de renovador do romance francês. O mais interessante é saber que Marcel não gostava dos livros de Gustave. Mas via em sua escrita os elementos de quem simplificou a língua, rompeu alguns cânones do tradicional romance francês do século XIX, utilizando formas verbais e advérbios que eram então vistos com reserva. E Flaubert também colocou em sua prosa altas doses de informalidade, onomatopeias e neologismos que fariam com que os críticos do século XX o enxergassem como um precursor do nouveu roman. E só isso basta como referência para que voltemos a esse clássico.
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