Uma das promessas literárias que fiz na passagem de 2016 para 2017, aqui neste post, foi incluir O jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, na lista de releituras do ano. Coloquei o tijolinho de 521 páginas na cabeceira lá pelo mês de maio. Comecei a ler em junho e fui pulando de capítulo a capítulo lentamente, entre um livro e outro, até engrenar na leitura na virada do ano e terminá-la na primeira semana de 2018. Missão cumprida.
Esta foi a segunda releitura desse livro incrível, que fez minha cabeça e me tocou o coração ali pelo meio dos anos 1990, quando comprei a edição da foto, publicada pela Civilização Brasileira em 1994. Cortázar continua sendo do catálogo da editora. E continuará sendo um dos meus escritores preferidos. Porém, tudo tem um mas.
Do arrebatamento da primeira leitura, que incluiu muita emoção ao passar pelo Pont Neuf em Paris e ir identificando ruas e cafés citados por Horácio Oliveira, o protagonista do romance, segui para uma segunda leitura mais serena nos anos 2000. Já a leitura desta década veio carregada de um olhar diferente, que atribuo ao aprendizado que o exercício de manter este blog me dá. Acrescento também a influência importante e saborosa de uma pessoa que tem me ensinado muito a respeito de questões de gênero, machismo e o necessário feminismo: Renata <3.
É frequente terminarmos uma leitura trocando impressões, identificando posturas, percebendo bandeiras, explícitas ou não, como as que identifiquei em Ali Smith e o seu impressionante Como ser duas coisas, que Renata agora está lendo. Esse olhar mais aguçado e o meu crescimento pessoal para a consciência do tema da igualdade de gêneros é algo que tem me motivado muito, em variadas esferas da vida. E se a literatura é um dos meus assuntos prediletos, é claro que a leitura passa a ser mais atenta.
Tudo isso pra dizer que Horácio Oliveira é um personagem altamente cativante, um vagabundo que queremos adorar, um cara com quem gostaríamos de partilhar um vinho, um conhaque ou mate para falar um monte de besteiras e coisas sérias sobre tudo e sobre todos. Mas Horácio Oliveira é também um detestável machista, um sujeito que tem entre seus esportes prediletos humilhar, desprezar e reduzir a nada as figuras femininas que o cercam. Ou quase nada, porque por sexo ele se interessa.
No vai-e-vem que damos no livro, pulando os capítulos em uma sequência que parece não ter lógica (mas tem!) sob o roteiro maroto que Cortázar sugere aos leitores ousados e sem preguiça, conhecemos Maga, Babs e Pola, no círculo de amizades parisienses de Oliveira. E na sua Buenos Aires natal, Talita, a mulher de seu grande amigo Traveler. Todas, sem exceção, são chamadas de burras e ingênuas. A todas, o papel de esquentar o mate, fazer o café e, quando necessário, abrir as pernas. Discussões sobre filosofia e literatura perto delas devem ser evitadas por Horácio e seus amigos do “clube”, já que por ignorantes, elas acabam por fazer perguntas tolas. Isso sem contar Gekrepten, em quem Oliveira se pendura quando volta a Buenos Aires, deportado, sem um tostão e sem disposição para se mexer e ganhar algum dinheiro. Faz dela sua Amélia, como atesta este trecho:
“Corria tudo muito bem, Gekrepten estava encantada, preparava uns mates impecáveis e, embora fizesse pessimamente o amor e a macarronada, possuía outras importantes qualidades domésticas e deixava-lhe todo o tempo necessário para pensar em partida e regresso, problema que o preocupava nos intervalos de uma corretagem de cortes de gabardina.”
Estamos no inferno do jogo da amarelinha. E sei que posso incomodar legiões de fãs de Cortázar com esse olhar um tanto duro. Mas a brincadeira infantil, todos sabem, começa no inferno e o objetivo de quem joga é chegar ao céu. Cortázar nos oferece um imenso céu, repleto de pontos luminosos de uma literatura refinada e sem hermetismo. Culta e popular. O que torna O jogo um dos meus livros de cabeceira, para todo o sempre.
O céu de Cortázar está nas maravilhosas divagações da turma de Horácio. Entre um porre e outro, essa trupe de vagabundos dos anos 1950 está assombrada pela Guerra Fria e pela iminência de uma catástrofe nuclear, espantada com tecnologias como a do computador, que lhes parece uma grande ameaça à humanidade. Isso ficaria datado nas mãos de um escritor qualquer. Mas em O jogo da amarelinha nos deparamos com as reflexões sempre atuais de um humanismo pessimista. E se transportamos muitas das conversas do “clube” para os nossos dias, vamos ver que se repete ferozmente o embate entre esquerda e direita, o medo de um louco botar fogo no mundo, a iminência de desastres ambientais, o desencanto com a política, o medo do conservadorismo moralista tomar conta da agenda pública.
Cortázar parece nos perguntar: o que faremos, os humanistas, que temos ideias e ideais, mas não temos o poder de mudar as coisas? A literatura entra nesse desencanto. Necessária, fundamental para o processo civilizatório, porém, limitada pelo seu ridículo alcance. Afinal, os leitores, somos uma minoria, quase uma confraria de abnegados e esquisitos.
E assim, pulando pelos capítulos, vamos bebendo da prosa de Cortázar como Horácio e Maga bebem mate, sorvendo cada gole daquela água quente batizada pela erva como se fosse um líquido vital, sem o qual todos estaríamos mortos. A literatura é vital para quem dela gosta. E daí que vem seu fascínio.
Entre o inferno e o céu, a releitura comprovou a força do romance. Sim, Horácio é um canalha com as mulheres. E isso precisa ser dito e contextualizado, como acontece com muitas outras obras que estão sendo relidas com o espírito de nosso tempo. E cabe perguntar: Cortázar colocou em Horácio suas ideias sobre relações de gênero, ou compôs uma personagem arquetípica do macho sul-americano metido a intelectual, filósofo, humanista, mas machista até a medula, como uma denúncia contra o eterno esquerdomacho que parece não desgrudar de muitos militantes de esquerda?
O jogo da amarelinha é um livro eterno. E se você ainda não o leu, vá em frente. Não cabe aqui contar o fio da história, que até pode parecer um tanto banal. O importante é fazer uma leitura concentrada nos grandes debates, de boteco, é claro, que Oliveira e seus amigos fazem. O encontro com o escritor mítico no leito de um hospital, as doiduras pelas noites parisienses, os clochards, as flanagens pelos boulevares, o medo que o grupo de maltrapilhos, e estrangeiros, provocam nos parisienses “de bem”. Nada mais atual que um livro escrito nos anos 1950.
Boa leitura!
P.S.: tomei a imagem em destaque emprestada do site argentino http://www.lagaceta.com.ar. Ao terminar a leitura do livro, passei a observar calçadas e praças em busca de um jogo da amarelinha riscado no chão. Foi em vão.