A mais longa das noites

Foi assim de um jeito meio descuidado que resolvi pegar para ler A noite da espera, o mais novo romance do amazonense Milton Hatoum. Não me atentei que era o começo de uma trilogia, chamada O lugar mais sombrio.  Não cheguei a me irritar, mas pensei: e se não gostar do livro, ainda assim ficarei amarrado ao fio da história e terei de ler os outros? Sentimento parecido com o que tive ao mergulhar na Série Napolitana, de Elena Ferrante. Se bem que naquele caso eu estava consciente de que se tratava de uma tetralogia.

Deixei de lado os receios e comecei a leitura do romance, que acaba de ser publicado pela Companhia das Letras, com o capricho habitual. Hatoum, escritor consagrado, de quem li Dois irmãos, Cinzas do Norte e Relato de um certo Oriente me anunciava um livro denso, de narrativa em terceira pessoa, eventualmente ambientado na Amazônia. E não foi nada disso que encontrei em A noite da espera.

2017-12-07 20.26.53

O leitor se depara com um diário pessoal com anotações feitas em dois planos temporais. Em Paris, no exílio, no final dos anos 1970, um jovem dramaturgo vai revisando as anotações que fez desde a adolescência, entre Santos, no litoral de São Paulo e a capital paulista, ainda no começo dos anos 1960. Logo depois, o golpe militar, a ditadura e uma inesperada mudança para Brasília. Os pais –  um engenheiro ambicioso e bajulador de políticos, a mãe, uma mulher frustrada por não seguir sua vocação para as artes – separam-se de repente. A mãe passa a viver com um artista plástico em andanças misteriosas pelo interior de São Paulo e de Minas. O pai consegue emprego na Novacap, empresa de construções da recém criada Capital Federal, e parte carregando o filho adolescente por quem não tem um mínimo de empatia. Não é um filho, é uma obrigação.

E assim, os relatos do diário vão se alternando entre lembranças escritas uma década depois e as anotações feitas pelo garoto que chega em uma cidade recém tomada pelos militares. E vai crescendo, estudando no colégio modelo da universidade onde se envolve com um grupo de teatro amador, no qual é admitido como uma espécie de patinho feio.

As pontas soltas de cada trecho do diário vão se juntando aos poucos. Martim, esse é o nome do autor das anotações, vai crescendo em um ambiente cada vez mais tenso. Em casa, enfrenta a ira do pai, metido em negócios não muito claros com os militares, entusiasta dos generais ditadores, que vê no filho um comunista em formação. Na rua, descobre a sexualidade. Tímido, é escolhido por uma das meninas do grupo de teatro, que divide prazeres entre ele, filho de classe média, morador do Plano Piloto, e um garoto que mora em uma das favelas nascentes nas cidades satélite do DF. Prazeres à parte, o que realmente torna o ambiente nas ruas tenso é a ditadura. Na universidade, onde tenta ingressar no curso de arquitetura, violentos embates entre militantes de esquerda, resistentes à ditadura, e milícias de direita. Incursões policiais no Campus para prisões de “subversivos” são comuns. Entre os militantes, as muitas correntes, os mais engajados acusando a turma do teatro de alienada. Na verdade, ninguém se entende e o pau come solto.

Martim vai nos contando em suas reminiscências como se aproximou de um embaixador, pai de um dos atores do grupo. O diplomata está encostado, por suas posições políticas alinhadas ao governo anterior. No ostracismo, promove debates sobre literatura, doa e empresas dezenas de livros a Martim. Vai formando um leitor. E este, para se livrar da dependência paterna, consegue emprego em uma livraria que também é um centro de cultura e de resistência.

Já falei demais do livro e não vou contar detalhes que possam parecer spoiler. Mas o palavrório explicativo teve como intenção dar o contexto em que se passa a história criada por Hatoum, também ele um estudante de arquitetura nos anos 1960.

Estamos falando de memória, afeto, relações familiares, o sumiço de uma mãe, a relação com um pai autoritário, o embate das ruas, as descobertas do corpo e do intelecto, pessoas desaparecendo, violência. Decepções, frustrações, sexo, gozo, ciúme, drogas, pirações. Hatoum construiu uma narrativa que tem um enorme potencial para se consolidar como uma trilogia de formação.

O romance é também uma espécie de memorial de lembranças de um período que não podemos esquecer. E que se junta à crescente e saudável onda de livros que resgatam os anos sombrios da ditadura militar. Uma clara resistência aos movimentos que tentam fazer daquele um período idílico em nossa curta e conturbada história como país.

Será longa a espera pela segunda parte da trilogia. O final dá leitura dá um absurdo gosto de quero mais, porque muitas pontas ainda estão por se ligar e o leitor fica ávido pelos próximos passos.

Diga aí, Companhia das Letras, quando vem o segundo volume?

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6 comentários sobre “A mais longa das noites

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