Thereza, Therezinha, Joana e Tereza. Quatro nomes de uma mulher com história de vida que cabe em livro e que é roteiro praticamente pronto para um filme dos melhores. E quem resolveu pegar essa história para si e transportar para a literatura foi o jornalista e escritor pernambucano Inácio França, que publicou Terezas pela editora carioca Confraria do Vento. O Lombada foi à leitura, feita em duas sessões de sombra e cerveja gelada na praia de Boa Viagem, no Recife, como mostra a foto. E que leitura!
Se é preciso coragem para biografar personagens do passado, a jornada de Inácio França se revestiu de coragem redobrada para transformar em um belo romance biográfico a história de uma contemporânea e conterrânea. Pois Terezas narra as aventuras (e são muitas) de vida da artista plástica pernambucana Tereza Costa Rêgo, vivíssima, aos 88 anos, produzindo como sempre. O leitor que mergulhar no romance vai conhecer a Tereza que veio antes da pintora. E entenderá como tantas mulheres podem caber em uma só.
Nascida em uma família tradicional, Thereza, com tê-agá, cumpria o roteiro das moças de seu tempo. Estudou artes plásticas, casou-se com respeitado desembargador, reconhecido como progressista em suas decisões e posicionamentos políticos. Duas filhas e uma vida social destacada. Mas Thereza sentia-se só. Faltava algo em sua vida tão meticulosamente bem sucedida. E então veio a paixão. Por ninguém menos do que um célebre comunista, Diógenes Arruda Câmara, companheiro de jornadas de Luís Carlos Prestes. Amigo da família, Câmara se aproximou dela pouco antes do golpe militar de 1964. Uma paixão que alguns narradores chamariam de tórrida, imprudente e impudica. E que logo se tornou motivo de escândalo entre os bem-nascidos do Recife. Foi aí que Therezinha – ainda com tê-agá e agora com o diminutivo que parece ser uma das senhas para a entrada nas colunas sociais – começou a deixar de existir. Enfrentou a família, a fúria da mãe religiosa e conservadora, o desprezo e a hipocrisia do marido repleto de amantes, o cinismo do irmão, advogado progressista, que em certa altura lhe disse uma frase lapidar do machismo patriarcal:
“Não existe mulher separada na nossa família. Vamos fazer o seguinte: você fica dois, três meses em Paris. Seis meses até. A gente diz que você foi estudar francês. Você fica seis meses lá trepando, dando para quem quiser. Quando volta, lava, costura tudo e volta pro seu marido. Deixe que eu acerto isso.”
Ela peitou também o irmão e seu modo peculiar de proteger a “honra”. E a família teve de conhecer sua primeira mulher separada. Era 1964 e Therezinha perdeu a guarda das filhas, o direito ao dinheiro e o apoio materno. Junto com esse vendaval, chegou o golpe militar. E Arruda Câmara era dos mais visados pelos milicos. Começou então uma vida de clandestinidade, que passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, Lisboa e Paris, sem contar as andanças por Moscou, Pequim e Tirana. Foi nesse percurso que Therezinha se tornou Joana, seu nome na militância.
Para contar essa história de tantos percalços, Inácio abre mão da linearidade. O romance começa em 1979, narrando a chegada do casal em São Paulo, após longos anos de exílio e vai dando saltos no tempo. Volta aos anos 1960, pula para os 70 e assim vai lançando pontas que se juntam aos poucos na trama que se desenrola em um ritmo alucinante. Daí a vontade de não largar o livro até o ponto final.
Marotamente, o autor nos diz logo de cara que Terezas “não é um livro sobre política, exílio e luta contra a ditadura. É um livro sobre paixões”. E o que seria o envolvimento de Tereza e Diógenes senão um amor também político, também nascido exilado e vivido praticamente todo no exílio? E o que seria sua paixão comum senão a luta contra a ditadura e o sonho de uma nova ordem?
É justamente esse aviso de Inácio França que acende no leitor o alerta para ler mais do que a história de uma paixão. Ficamos o tempo todo ligados no contexto político, no enfrentamento contra um regime cada vez mais duro e sanguinário, nas notícias de companheiros de luta que se vão nas celas e nos porões da ditadura. E nas raras notícias esperançosas de resistência até o momento da Anistia, aquele arranjo tipicamente brasileiro em que uma ditadura finge que acabou, sem acabar, e admite a volta daqueles que considerou como párias.
O livro é curto, mas tem em suas poucas páginas um incrível adensamento de histórias que mostram o quão intensa foi a relação de Tereza e Diógenes em pouco mais de 15 anos de convívio. Com uma linguagem direta, sem floreios, claramente influenciada pelo texto jornalístico do autor, Terezas não tem meios termos em relação a temas delicados como sexo, aborto, relações machistas dentro das organizações de esquerda – Joana é poupada de informações vitais sobre as atividades do partido e há raríssimas mulheres na militância – e uma dura crítica ao patriarcado pernambucano, que na verdade espelha as relações de dominação presentes historicamente na sociedade brasileira. Inácio nos revela uma mulher que, em nome de uma paixão, lutou contra tudo isso. E, ao se ver abruptamente sem seu amado, ergueu a cabeça e seguiu para tocar sua vida.
O livro termina nesse momento, quando finalmente nasce Tereza sem tê-agá, quando desaparecem Joana, Therezinha e Thereza e ficamos a pensar em como a mulher se tornou a artista Tereza Costa Rêgo.
Faço aqui um apelo para que Inácio nos fale dessa Tereza. Seja em um novo romance, em uma biografia. Este leitor quer mais!
Ao terminar de ler Terezas, logo depois da leitura do romance de Milton Hatoum, que resenhei aqui, fiquei com a sensação de que os últimos anos têm sido pródigos de boa literatura e bons livros não acadêmicos sobre o período da ditadura. É também o caso do belíssimo livro de depoimentos de militantes pernambucanos, publicado pela amiga Joana (de onde vem esse nome?) Rozowykwiat, neta de Tereza, que resenhei aqui. A ditadura também está presente no premiadíssimo romance de Maria Valeria Rezende, Outros cantos, entre muitos outros que abordam o período, talvez com maior distanciamento histórico, e com qualidade literária. São livros que ajudam a não esquecer os horrores que vivemos entre 1964 e 1985.
A edição de Terezas, caprichada e tem a capa feita por Tereza Costa Rêgo, é claro. Falta apenas uma revisão mais cuidadosa para as futuras impressões.
A foto que ilustra o post é da obra “Desvio para o vermelho”, de Cildo Meireles, fotografada pelo blog em uma das muitas visitas ao Instituto Inhotim, em Minas Gerais. E parece ser a casa dos sonhos que no fim das contas o casal Tereza e Diógenes nunca conseguiu ter.
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