Memória de tanta espera
Teu corpo crescendo, salta do chão
E eu já vejo meu corpo descer
Um dia te encontro no meio
Da sala ou da rua
Não sei o que vou contar
Respostas virão do tempo
A epígrafe deste post é da canção Ao que vai nascer, de Milton Nascimento e Fernando Brant, gravada em 1972, no disco Clube da Esquina, referência para toda uma geração que, como eu, cresceu durante a ditadura e buscava na MPB sinais para entender o que se passava e força para lutar. Naqueles anos duros e sombrios, Milton Nascimento trazia ao mundo Pablo, seu filho. Nessa canção, ele anuncia a esse menino “que vai nascer” que a maré não está para peixe, ou, como indaga uma outra canção desse período, “o que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé? O que vocês fariam pra sair dessa maré?”.
A essas perguntas, muitas pessoas responderam com ação. Desde os primeiros dias da ditadura recém instalada já havia quem resistisse. E, com o endurecimento do regime, grupos se organizaram para tentar derrubar a ditadura. Cada qual ao seu modo, muitos seguindo orientações políticas que hoje parecem obtusas ou descabidas. Resistência pacífica, luta armada, guerrilha urbana, guerrilha rural foram as vias escolhidas para lutar. Dezenas de pequenas organizações se formaram durante os anos da repressão. Foram duramente reprimidos. Alguns, dizimados nos porões do aparato de tortura e morte montado pelos militares. E, vergonha, nem sabemos até hoje quais e quantos foram mortos.
Também sabemos muito pouco acerca desses grupos. O que levou cada um deles a participar ou simpatizar com as ações de resistência? E hoje, o que pensam do país em que vivemos aqueles que sobreviveram?
Memória de tanta espera? Por que esperamos tanto para ter essas respostas?
Subversivos – 50 anos após o golpe é um livro sobre a memória. É um livro que joga luz sobre as questões acima. A obra de Joana Rozowykwiat é um documento carregado de emoções que emanam dos depoimentos de nove pessoas que foram perseguidas, presas e torturadas durante a mais recente ditadura militar brasileira. O elo de ligação entre esses depoimentos é Pernambuco, lugar de militância política antes, durante e depois da ditadura. Sim, todos continuaram, a seu modo, fazendo política no processo de democratização do país.
O que este livro oferece aos leitores vai além do que encontramos em obras historiográficas. Ele traz história oral, matéria rara de se ver em texto. A autora, jornalista, neta e filha de militantes políticos, não foi atrás de documentos da repressão. E nem dos escritos dos grupos de esquerda, seus longos tratados de análise de conjuntura ou das provas impressas de sua atuação, formas de financiamento da luta e objetivos definidos em assembleias intermináveis. Joana trouxe até nós, leitores, o relato de nove pessoas que nos entregam suas motivações, biografias, pensamentos políticos da época e sua visão do Brasil de hoje.
Em Subversivos, Joana Rozowykwiat não se esconde no papel de uma suposta, e impossível, neutralidade jornalística e científica. Seus relatos dos depoimentos são carregados de impressões pessoais, observações a respeito dos entrevistados, detalhes sobre o lugar onde foi recebida para a entrevista.
A edição da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco é caprichada. Tem um glossário para que o leitor não se perca na sopa de letrinhas dos movimentos de oposição e órgão de repressão. E a capa tem a luxuosa contribuição de Tereza Costa Rêgo, artista plástica renomada, avó da autora e também militante.
Volto à canção da epígrafe, citando os versos “responde por mim o corpo / de rugas que um dia a dor indicou” para destacar aqui o depoimento de Luci e Luciano Siqueira, casal que se formou na militância, resistiu à tortura e à desesperança, e que continua unido pelo ideal de transformação da sociedade e pela busca de justiça e solidariedade. Em seus corpos e em sua memória, a tortura deixou marcas. Mas eles nunca desistiram do sonho. Dos vários momentos delicados do livro, este foi o que me levou às lágrimas.
Não vou fazer spoiler dos depoimentos. Leia Subversivos e propague a memória de um passado que não podemos esquecer, para que não nos assombre novamente.
P.S.: segue o link para a canção da epígrafe;
P.S.: peguei o título emprestado de Carlos Heitor Cony. Ele, também, um sobrevivente.
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