Imagens perdidas de uma cidade fantasma

Tem gente que acredita em deus, tem que gente que acredita no poder do acaso. É neste segundo grupo que está o historiador pernambucano Frederico Toscano. O terceiro homem: a fotografia e o Recife de Ivan Granville é fruto de uma coincidência quase inacreditável – e também de muita persistência e pesquisa. Segundo livro lançado por Fred pela Cepe Editora, ele se volta à capital pernambucana dos anos 1940 a 1960 através do olhar de um fotógrafo amador cujo trabalho quase se perdeu pra sempre.

O primeiro contato de Fred com uma foto de Granville foi por um perfil do Facebook dedicado a divulgar imagens antigas do Recife. O sobrenome chamou sua atenção, já que ele tinha uma amiga com a mesma assinatura. Descobriu que o fotógrafo era o avô dela, que era amador e que nada se sabia sobre o paradeiro de seu acervo. Fascinado pelas poucas imagens que tinha visto até então, ele convenceu a amiga a empreender uma caça ao legado de Granville junto aos parentes mais velhos.

O resultado foi um apanhado com 317 imagens amarelecidas pelo tempo, marcadas pela ferrugem de clipes de papel e anotadas pelo autor de próprio punho. Um conjunto que revela um fotógrafo em pleno processo de formação técnica e estética, e que tinha no Recife sua melhor (ou única) fonte de inspiração. Granville era contador da usina da família e fotografava nas horas vagas, cruzando a cidade a pé para aproveitar melhor os acasos que lhe colocavam frente a frente com os personagens e os monumentos da cidade.

Não era um fotógrafo especialmente bom. Talvez uma dúzia de suas imagens seja excelente, como a Terceiro homem, que ilustra a capa do livro e lhe dá nome. Porém, tinha um impulso documental quase obsessivo pelas paisagens da cidade onde morava, o que nos leva ao valor da descoberta do seu acervo e da pesquisa realizada por Toscano. Ela se dá menos pela importância individual de Granville e muito mais pelo potencial de discussão que está pro trás do processo de descoberta e pesquisa.

Como diz Toscano, as fotos de Granville revelam uma necrópole – um Recife que não existe mais, e que já estava desaparecendo na época do fotógrafo. O período em que se concentra a maior parte da sua obra está inscrito em um dos ciclos modernizadores da cidade, em que muito se demoliu em nome do progresso. Dentre as imagens mais raras, a da Igreja da Sé, em Olinda, com uma fachada mais antiga, que foi modificada no último projeto de restauro empreendido no templo; o prédio da Administração do porto do Recife, demolido para dar lugar a um armazém de açúcar; o forte do buraco, igualmente destruído.

Por outro lado, é também um acervo que revela permanências: os trabalhadores que sobrevivem nas ruas do Recife vendendo comida popular – a tapioqueira retratada por ele em quase nada difere daquela que me vendia tapiocas na calçada do Diario de Pernambuco até o jornal se mudar para Santo Amaro, em 2005. Nas imagens do bairro de Boa Viagem, a fratura é quase completa. Foram-se as casas, substituídas em curto espaço de tempo por espigões que hoje fazem sombra na praia antes das 15h. Mas ficaram os sargaços na areia, alheios à dilapidação da cidade, para provar que certas coisas não podem ser mudadas pela vontade do homem.

Quantas outras imagens como estas não estarão perdidas em acervos desconhecidos, guardadas em caixas de sapato, por netos ou bisnetos que pouco ouviram falar de seus avôs fotógrafos? O que isso nos dias sobre o que nos captura o olhar hoje, quando o inimaginável aconteceu: todos temos à mão uma câmara, integrada a um telefone, que possibilita o imediato arquivamento, compartilhamento e indexação de fotografias? Como essas fotos serão vistas, perdidas, guardadas, garimpadas, redescobertas (ou não) daqui a 50 anos?

O texto de Toscano tem a enorme qualidade de ultrapassar o estrito objeto do livro, relacionando-o a questões como as descritas no parágrafo acima e outras também absolutamente contemporâneas, como é o caso da controversa ocupação do espaço urbano do Recife. Nesse sentido, O terceiro homem é também fruto de um Zeitgeist que abarca o movimento Ocupa Estelita e o filme Aquarius, por exemplo, todos gerados por uma inquietude contra a dilapidação da memória física e a perspectiva social da cidade.

Assim como foram fundamentais na mobilização que denunciou e até hoje barra a construção de um conjunto de torres de alto padrão no Cais José Estelita, Toscano enxerga nas redes sociais possíveis aliadas na preservação e difusão do patrimônio imagético da cidade. Afinal, é graças à circulação dessas imagens com uma facilidade nunca antes experimentada – possível graças à iniciativa dos abnegados que digitalizam e disseminam esse acervo físico – é que ainda nos resta uma memória coletiva do que foi o Recife um dia.

Com O terceiro homem, Toscano se consolida como uma das novas vozes da pesquisa e principalmente da difusão da história do Recife, com um texto leve, elegante e atraente, sem abrir mão da complexidade, algo raro na produção da História brasileira. Ele já havia conquistado terceiro lugar no Prêmio Jabuti com seu trabalho de estreia, À francesa: a belle époque comer e o beber no Recife, em sua especialidade – a gastronomia (resenha completa aqui). Ele está agora concluindo pesquisa sobre a influência americana nos hábitos alimentares dos recifenses durante a Segunda Guerra Mundial – o Lombada Quadrada espera ansiosamente.

Os livros de Toscano estão à venda no site da CEPE Editora.

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