[Publicado originalmente no Suplemento Pernambuco de Março/2015]
Por Renata Beltrão
Pegue uma receita qualquer, acrescente um nome pomposo e — voilà — está pronto um prato digno de custar três vezes mais. Ou acresça ao bom e velho carrinho de cachorro-quente um nome estrangeiro. Batize-o, digamos, de foodtruck, e obtenha o mesmo efeito. Ou, ainda, venda um apartamento com uma churrasqueira embutida e chame aquilo de varanda gourmet. Fica melhor na propaganda, junto com a tranquilidade de um muro eletrificado isolando o prédio do perigoso mundo lá fora.
Numa época em que a mobilidade social dá as caras e borra algumas fronteiras até pouco tempo muito bem definidas no perfil econômico dos brasileiros, a gourmetização vem sendo, ao que parece, uma estratégia contemporânea bastante difundida para diferenciação entre pessoas, tendo a gastronomia como um dos principais marcadores.
E se a internet pode trazer algum indicador de percepção desse fenômeno, vale lembrar que este foi um dos temas mais recorrentes de memes em 2014. Como não chorar de rir com o raio gourmetizador, que transforma uma singela tapioca de R$ 1 na “tapioquinha rústica com renda de creme burleé” (sic) a R$ 26,50? Na ausência de real diferenciação do produto, são o nome prolixo e o preço que cumprem o papel de separar consumidores entre quem pode ou não pagar pela exclusividade, ainda que esta seja mais retórica do que prática.
O nome é novo, mas as raízes remotas da gourmetização remontam à própria origem dos restaurantes no Brasil, quando a vontade de modernização importou o hábito parisiense de comer fora junto com todas as instituições, utensílios e convenções sociais a ele relacionados. Na Recife do final do século 19 e início do século 20, a moda era ser francês: comer em um restaurant, servido por um garçon, hospedar-se em um hôtel e brindar com champagne. E se o prato não tinha lá uma origem muito gaulesa, mais importava que o nome o fosse: por que comer frutas e bolo se era possível degustar fruits divers et gateaux variés? O preço majorado, obviamente, para fazer jus ao nome estampado no menu.
Em livro lançado em dezembro de 2014 pela Cepe Editora, o historiador e gastrônomo Frederico de Oliveira Toscano resgata a época em que o impulso modernizador toma a capital pernambucana de assalto, acarretando uma série de mudanças nos hábitos sociais, inclusive gastronômicos. Esse processo de europeização acabou tendo a curiosa consequência de lançar numa cruzada regionalista o então jovem sociólogo Gilberto Freyre. À francesa: a Belle Époque do comer e do beber no Recife retrata um momento definidor da cultura recifense e brasileira, partindo da gastronomia para evidenciar como a influência estrangeira marcou (e ainda marca) a identidade local em vários outros setores.
Até o advento dos restaurantes e cafés importados de Paris, eram inéditos não só os espaços, mas a própria necessidade de comer fora. Refeições eram quase sempre uma exclusividade doméstica. E a única forma de viajantes contarem com um mínimo de conforto no Recife era chegar com uma carta de recomendação para se hospedar com uma das abastadas famílias tradicionais.
No contexto da mudança, os restaurantes e sorveterias surgem como primeiros espaços que mulheres podem frequentar publicamente sem risco de censura, embora os cafés tenham permanecido ambientes estritamente masculinos por várias décadas posteriores. Os francesismos definem, também, uma nova forma de ritualizar reuniões políticas em torno da mesa, sendo a abertura do champanhe a senha para o início dos discursos laudatórios aos convidados, especialmente se entre eles havia membros de governo.
Nos anos 1920, o incômodo com a exacerbação dos estrangeirismos à mesa levou Gilberto Freyre a maturar seu Manifesto Regionalista, incluindo a culinária como um dos pilares da defesa das tradições pernambucanas. Freyre advoga um “retorno reverente ao passado” com a criação de cafés e restaurantes regionais, com os doces das gordas quituteiras negras, as receitas de bolos das sinhás e as tapiocas de inspiração indígena.
O paradoxo, ressalta Toscano, é que Freyre defende tudo isso no ambiente de instituições estrangeiras por princípio — os próprios cafés e restaurantes, franceses até o tutano. Esta influência foi negligenciada pelo mais célebre sociólogo pernambucano em prol de um idealizado triângulo equilátero em que as influências negra, indígena e portuguesa monopolizariam com igual peso a definição da cultura gastronômica brasileira.
Acima de tudo, nesta Belle Époque recifense não era o bastante ser moderno — o essencial mesmo era parecer moderno. Daí a febre pela adoção indiscriminada de nomes franceses e dos adjetivos francês, francesa e à francesa, e de nomenclaturas longuíssimas mesmo para produtos categoricamente brasileiros — como é o caso do pãozinho francês, que de europeu mesmo só tinha a farinha de trigo. Seriam os primórdios da gourmetização contemporânea, já que até o neologismo vem do francês?
Em entrevista, Toscano diz que na origem sim, embora o processo recente tenha a ver com mudanças sociais e seja mais individualizado, não mais um reflexo direto do impulso modernizador do começo do século 20, que envolvia um ideal coletivo de país. “Hoje, famílias que já são abastadas ou que migram para classes sociais mais altas desejam se diferenciar do passado, do outro, da pobreza. Já que até a faxineira viaja de avião, vamos ao menos comprar sorvete Ben&Jerrys, ficar uma hora na fila, pagar 10 reais cada bola e nos sentirmos diferenciados”, explica.
A influência estrangeira seguiu lançando seus temperos à caçarola pernambucana, tanto que os efeitos da presença americana durante a Segunda Guerra Mundial sobre os hábitos gastronômicos do Recife é o tema da tese de doutorado que Toscano já começa a desenvolver na Universidade de São Paulo (USP). No avançar dos anos 1900, o gourmet foi cedendo parte do seu espaço ao cool. Mas, ao que parece, com novas leituras e significados, não nos deixou, nem nos deixará tão cedo.
Eu quero! Estou curiosa por este livro!
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Vou adorar ler este livro. Na listinha.
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