Um livro que explica São Paulo

“Os carros chegam ao municipal por todas as direções. (…) Uns cem automóveis e tudo mais eram carros puxados por cavalos. ‘Como o cocheiro veio mais cedo e disse que a coisa estava ruim para ir até lá, nos apressamos para chegar antes da hora marcada, 8 e três quartos. Atingimos a praça da República às 8h30 e o Municipal às 10h15, no começo do segundo ato. Mas ninguém teve a iniciativa de descer e seguir a pé. Seria escandaloso.”

O trecho em epígrafe é  parte das memórias de Jorge Americano, integrante de uma linhagem de paulistanos ilustres do século passado. Ele descreve a ida de sua família à inauguração do Theatro Municipal de São Paulo, na noite do dia 12 de setembro de 1911. Foi, talvez, o primeiro registro de congestionamento na capital paulista. A atitude das centenas de pessoas presas ao engarrafamento não se difere do que fazem os paulistanos do Século XXI. Enfrentam a lentidão e o caos para estacionar seus veículos exatamente em frente ao serviço de valet dos restaurantes, teatros e casas de espetáculo. Não se dignam a enfrentar a pé nem sequer 100 metros de rua.

A citação das memórias de Jorge Americano está no livro São Paulo, a capital da vertigem,a segunda parte de uma obra que se propõe a fazer a biografia da cidade de São Paulo. A primeira, A capital da solidão, abrange a São Paulo colonial, vila perdida no planalto paulista que parecia destinada ao ostracismo. Esta segunda parte conta como a cidade deixou de ser uma vila de pouco mais de 30 mil habitantes para se transformar na maior metrópole do país e uma das maiores cidades em todo o planeta em pouco mais de meio século.

VertigemA obra é de Roberto Pompeu de Toledo, jornalista que dedicou três longos anos a pesquisas e leituras. E nos brindou com um texto fluente, por muitas vezes divertido e irônico. E superou a ingrata tarefa de contar uma longa e complexa história recheada de fatos históricos e personagens que se entrelaçam para compor o quadro que nos ajuda a entender a construção da cidade.

Assim, ficamos sabendo como planos urbanísticos mirabolantes foram se sucedendo nos anos de vertiginoso crescimento. Alguns, executados pela metade, outros, alterados até sua completa desfiguração, e um em especial, o plano de construção do metrô, feito já nos anos 1920, engavetado, para a desgraça futura dos paulistanos.

Mas são os personagens que mais dão sabor à história. Um Brecheret que resolve acampar por décadas no lugar onde, enfim, conseguiria construir o Monumento às Bandeiras. Mario e Oswald de Andrade, juntos no movimento modernista, que trocam a amizade pela guerra de vaidades, para falar de apenas alguns entre dezenas de figuras interessantes.

O embate entre as tradicionais famílias quatrocentonas e os emergentes imigrantes, com altas doses de preconceito até que o dinheiro destes começa a encantar aquelas famílias ciosas de suas tradições e endividadas até a raiz dos cabelos.

Temo o casal de mecenas Yolanda Penteado e seu segundo marido, Ciccillo Matarazzo, que fariam de São Paulo a capital das artes. Os inúmeros prefeitos, governadores e presidentes do Estado e o peculiar modo de escolha dos líderes. A Revolução Constitucionalista de 1932, a revolta do Tenentismo de 1924 e as grandes greves operárias. A garoa paulistana banhada de sangue.

Os crimes  de “honra” ocultados por manchetes de exaltação a figuras públicas como Peixoto Gomide, que matou a filha por ciúmes e Moacyr Piza, assassino de sua amante, ganham destaque na narrativa da sordidez dos círculos sociais dos abastados.

Talvez faltem mais ironia e crítica aos arranjos feitos pela elite que construiu uma cidade dependente do automóvel, sempre temerosa do “comunismo” e que nos legou uma salada de projetos e pensamentos urbanísticos confusos. O episódio da retificação dos rios Tietê e Pinheiros, um dos maiores crimes a que São Paulo foi submetida, ficou pouco claro, por exemplo. Poderíamos saber com mais detalhes onde se perdeu a ideia de um rio cercado de amplas áreas verdes se tornar canal de esgoto e ser oprimido por longas avenidas.

Também passa ao largo da história, embora não deixe de ser citado, o plano de substituição de mão de obra escrava pela massa de imigrantes, com  as desastrosas consequências de uma estratégia que redundou na construção da mentalidade racista e xenófoba que até hoje vagueia por muitas cabeças (nem tão) pensantes da paulistanidade.

Apesar disso, São Paulo, a capital da vertigem é um livro que todo paulistano e toda pessoa que gosta ou odeia São Paulo deveria ler. Para entender o que somos hoje é preciso também recorrer ao passado.

A edição para Kindle, da Objetiva, é muito boa. E, confesso, comecei a série pelo segundo livro. Meu próximo passo será a leitura de Capital da solidão, para saber um pouco mais da remota vila de bugres bandeirantes. E torço para que Pompeu de Toledo lance mãos à obra para nos falar da São Paulo da segunda metade do Século XX, embora tenha declarado em entrevistas recentes que está cansado do tema e não sabe se valeria a pena relatar um período tão fresco na memória de muitos viventes desta megalópole.

A respeito de biografias e textos sobre história, como os famosos livros de Laurentino Gomes, é interessante perceber que uma história bem contada só nos chega saborosa e de leitura fluente quando foge das amarras da pesquisa acadêmica e normas científicas limitadoras. E não posso deixar de lembrar do livro do amigo Frederico Toscano, historiador com texto de bom contador de histórias, a respeito dos hábitos alimentares afrancesados no Recife da virada do Século XIX, já resenhado aqui.

P.S.: a foto que ilustra o texto é da fachada da Hospedaria dos Imigrantes, por onde milhares de imigrantes estrangeiros e migrantes brasileiros passaram.

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