Triste e solitária. Indócil e aventureira. Bruta e mal educada. Estamos falando da cidade de São Paulo, em seus primórdios. Fundada “oficialmente” em 25 de janeiro de 1554 por uma missão de padres jesuítas, tendo à frente os famosos José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, a vila na verdade já se configurava há alguns anos no chamado triângulo formado pela confluência dos rios Anhangabaú (sim, tem um rio ali) e Tamanduateí (sim, aquele canal de águas fétidas é um rio).
E há registros da presença de europeus antes mesmo da chegada formal dos portugueses ao litoral brasileiro. O caso mais emblemático foi o de João Ramalho, rude português que vivia entre os índios do planalto de Piratininga, engraçado com a índia Bartira e senhor de muitas terras e índios. Esta figura foi fundamental para a pacificação de alguma tribos, que aceitaram a presença portuguesa, dando condições para o desenvolvimento do primeiro núcleo de habitantes do vilarejo.
As primeiras habitações eram de taipa e a cidade foi, por muitos e muitos anos, um acampamento. São Paulo surgiu porque o litoral era pequeno para as ambições dos portugueses, que buscavam expandir as fronteiras de sua colônia, em guerra surda contra os espanhóis, que por usa vez tentavam ocupar o continente via Rio da Prata. A pequena vila era ponto de partida das expedições que buscavam ouro, índios para escravizar e conquistas territoriais, em uma espécie de War pós-colombiano.
De que livro estou falando, afinal? Trata-se de A capital da solidão – uma história de São Paulo, das origens a 1900, escrito pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo e publicado pela Editora Objetiva em 2003.
São quase 350 anos de história em deliciosas páginas recheadas de aventuras, rusgas eternas entre paulistas e o império por causa de impostos, controle da economia e da política, marca que ficará para sempre no jeito de ser da paulistanidade.
Eu fiz uma coisa estranha com a obra de Pompeu de Toledo. Li primeiro A capital da vertigem, cuja resenha está aqui. É a segunda parte da história, que o jornalista construiu a partir de extensa e cuidadosa pesquisa sobre a evolução da cidade. Se você quer começar direitinho, sugiro que leia pela ordem, afinal é bem mais lógico.
E o que Roberto Pompeu de Toledo nos revela dessa São Paulo colonial, depois imperial e que vê surgir a República, que será a era de seu apogeu econômico e político?
A São Paulo colonial foi um entreposto para as expedições exploratórias, partida de bandeiras que buscavam ouro e índios, lugar de passagem para tropas de bois que rumavam às minas gerais e à futura capital do império, o Rio de Janeiro.
No topo do paredão da Serra do Mar, galgado quase que de cócoras por aventureiros de todos os tipos, São Paulo viveu quase três séculos de absoluto isolamento e marasmo. As poucas casas eram habitadas apenas nos períodos festivos, pois seus moradores tinham propriedades rurais nos arredores da cidade. E seu poder político começou a se consolidar quando ganhou uma Câmara de Vereadores, composta pelo que então se chama de “homens bons”, necessariamente alfabetizados (uma raridade na época), brancos e proprietários de terras e de gente.
Esqueça a São Paulo dos imigrantes e pense que a vila era então “a mais brasileira de todas as cidades, quando se entende por brasileiro algo diferente do português, um produto novo e híbrido, surgido ao impacto do encontro do europeu com o índio, do trigo com a mandioca, da arma de fogo com o arco e flecha, ainda que nesse enlace uma das partes já estivesse escalada para perder, e outra para ganhar, uma para sofrer, outra para gozar. Não apenas se dormia em redes, na vila primitiva. Também se morava em casas que, em grande parte dos casos, não eram mais do que adaptações da oca indígena. Comia-se comida de índio, usavam-se armadas de índios e até se falava, tanto quanto o português, ou talvez até mais, a língua geral dos índios.”
Essa foi a São Paulo da solidão, que começou a tirar a sorte grande com a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Sua localização privilegiada em um planalto a partir do qual era possível se deslocar para áreas estratégicas da imensa colônia, fez com que algumas benesses fossem praticadas em favor da vila, que então era menor do que cidades já desenvolvidas como Belém, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. E uma dessas benesses foi a instalação por essas bandas da primeira instituição de ensino superior brasileira, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Estudantes das mais variadas regiões começam a agitar a cidade, que então passa a ser ponto de morada e não apenas de pouso eventual. A construção de uma primeira via em direção ao litoral, a calçada do Lorena, rompe o isolamento e até mesmo o romance entre Dom Pedro I e sua amante, a marquesa de Santos, que tem início na viagem que redundou na independência do país, parece favorecer a sorte da pequena vila.
E São Paulo vai construindo sua mentalidade reclamona, com observações como a de um viajante, que viu ruas mal conservadas, anotando que “é tão grande a irregularidade que se encontra em quase todas as ruas desta cidade que não pode ter emenda sem a destruir.” Dá pra entender por quê os prefeitos paulistanos sofrem tanto na mão de seus eleitores, não?
E se você acha que mosquito e pestilência são coisas dos nossos dias, é bom lembrar que “por ser a mesma cidade formada pelo rio e por um ribeirão, que corre num pantanal, certamente muito nocivo à saúde do povo”, anota o mesmo viajante.
Mas não foi exatamente a Faculdade de Direito que transformou a acanhada vila em uma promessa de cidade. Isso aconteceu com a chegada do café. Não é novidade pra ninguém que a sanha europeia pela nova bebida gerou uma agricultura valiosa em terrenos propícios, no interior paulista, depois de um rápido ciclo no Vale do Paraíba, em terras fluminenses.
Foi nas terras da mogiana que a plantinha de frutos vermelhos se deu bem. E São Paulo, no caminho entre o plantio e o embarque pelo já fervilhante porto de Santos foi escolhida para ser o centro dos negócios, da moradia dos ricos e prósperos fazendeiros. Estes, nadando em dinheiro, começaram a pensar em outros investimentos. E daí surgiu a indústria.
Fácil e linear, não? Nem tanto, porque São Paulo viveu às voltas com brigas oligárquicas, disputas ferozes de poder entre famílias tradicionais e uma tenaz resistência inicial à chegada de estrangeiros que vinham para a lavoura do café e na cidade acabavam se estabelecendo, dando início a uma série de atividades econômicas próprias de um burgo desenvolvido. Alfaiates, mestres de obras, sapateiros, comerciantes. São Paulo apontava para o futuro.
Mas, como relata o autor, já mostrava sua veia para o improviso urbano, ocupando terras de forma desordenada, mudando curso de rios, começando a canalizar alguns deles, vivendo às voltas com enchentes, ocupações irregulares de espaços públicos, fazendo a São Paulo de meados do século XIX não diferir da atual metrópole nos problemas e no individualismo exacerbado de seus cidadãos.
A capital da solidão não é um livro formal de história, e nem foi desejo do autor fazer um tratado acadêmico. É simplesmente o que todo livro de história deveria ser: saboroso para ler, bem escrito, instigante.
Li a edição para Kindle. Ao contrário do segundo volume, nesta não é possível ver as notas com um simples clique. O que me fez não conhecer todas as referências bibliográficas enquanto lia. E nem todas as ilustrações eram ampliáveis, o que também me fez perder uma parte preciosa da iconografia.
É livro para ter impresso, na biblioteca. E deveria estar em todas as escolas da cidade, pra que os paulistanos tenham acesso a esse relato fundamental da formação desta cidade que amamos odiar, ou odiamos amar.
3 comentários sobre “SP, crônica de uma cidade nervosa”