De volta a Macondo

IMG_20171108_145129294_HDRCem anos de solidão foi meu primeiro alumbramento literário. Eu devia ter uns 17, 18 anos, e já tinha lido ótimos livros até aquela altura, mas nada que tivesse falado tão diretamente ao coração e à cabeça ao mesmo tempo.

Lembro claramente de como ria com o sarcasmo próprio dos habitantes de Macondo – um sarcasmo absurdo que muitas vezes provinha, paradoxalmente, de uma lógica estritamente cartesiana.

Enlouquecia de empolgação ao surgimento de cada novo Aureliano e José Arcadio, como se depois da quinta geração ainda esperasse alguma surpresa, e me vi desenhando a árvore genealógica dos Buendía para tentar entender aquele pandemônio de família.

Fiquei  pasma quando uma borboleta amarela entrou pela janela da casa da minha avó enquanto eu lia, deitada no sofá, sobre a paixão de Meme e Maurício Babilônia. Desde então, nunca consegui ver uma borboleta amarela sem lembrar imediatamente deste casal.

A obra prima do colombiano Gabriel García Márquez foi publicada originalmente na Argentina, em 1967, e completa meio século este ano. Por isso, resolvi relê-la mais uma vez, depois de quase dez anos da minha última “visita” a Macondo.

O livro causou o mesmo impacto de sempre, com sua prosa fluida, narrativa veloz e atraente, engenhosa e ao mesmo tempo muito simples e familiar: segundo o próprio Gabriel García Márquez, Cem anos ficou sendo maturado por quase duas décadas, até ele perceber que deveria escrever da mesma forma como os velhos contam histórias.

O livro conquistou o mundo praticamente de imediato e garantiu a entrada de Gabo no panteão do Prêmio Nobel de Literatura com apenas 55 anos. É, sem dúvida, uma das grandes obras humanas de todos os tempos – um clássico desde que nasceu, épico e ao mesmo tempo familiar; local e universal; complexo mas, principalmente, muito divertido.

A edição da minha releitura foi a publicada em 2007 pela Real Academia Española, em castelhano, na comemoração aos 40 anos do livro e aos 80 de aniversário de Gabo. É uma edição rica em prefácios e posfácios que me chamaram a atenção para várias particularidades do texto. A única desvantagem desse volume é a ausência das ilustrações de Caribé no abre de cada capítulo – essa em destaque eu fotografei de uma edição brasileira da Record.

Não vi muito sentido em resenhar Cem anos de solidão, mas compartilho neste post alguns dos achados dessa nova volta a Macondo. Se você já é fã dos Buendía, vai adorar descobrir novas facetas deste universo familiar; se você ainda não leu o livro, conforme-se com minha inveja – a primeira vez com Cem anos de solidão é uma das melhores experiências da vida.

Uma novela total
A definição é do escritor peruano Mario Vargas Llosa, que tem um renomado estudo crítico da obra de García Márquez. Total no sentido da completude, pois Cem anos de solidão se inicia com a fundação de Macondo e segue até seu colapso. Mais do que isso: a criação de Macondo é como uma gênesis, como se não apenas a vila, mas todo um novo universo estivesse surgindo – “O mundo era tão recente que muitas coisas não tinham nome e, para mencioná-las, era preciso apontar com o dedo”. José Arcadio e Úrsula são como Adão e Eva redivivos, pai e mãe dessa vila em processo de criação no interior da Colômbia, onde tudo acontece pela primeira vez . Como diz Vargas Llosa, “esses cem anos reproduzem a peripécia de toda a civilização”, mas em especial os países neocoloniais. Estão lá a descoberta, o desenvolvimento, a imigração, o florescimento do comércio, a monocultura em latifúndios, o capital estrangeiro, os conflitos armados, a luta de classes e, por fim, a decadência do mundo pré-industrial, que coincide com o fim da cidade e da família Buendía.

O realismo mágico e a ascensão de Remédios, a bela
Convencionou-se dizer que Cem anos de solidão é o ápice do estilo realismo mágico, ou realismo fantástico, que marcou a literatura dos anos 50 e 60 da América Latina. A definição refere-se à forma como as narrativas tratam fenômenos místicos como corriqueiros, o que por sua vez é inspirado num certo pendor latinoamericano ao exagero e à fé no invisível. Cem anos tem uma profusão de situações deste tipo, sendo um dos mais marcantes a ascensão aos céus da personagem Remédios, a Bela, enquanto ajudava a dobrar lençóis no quintal. García Márquez se inspirou em um fato verdadeiro e absolutamente banal, como contou a Vargas Lllosa: a personagem alude a uma moça que Gabo conheceu na juventude, e que fugiu da casa dos pais com um namorado. Para não enfrentar a vergonha, a família inventou a história da subida aos céus com o lençol, e a tratava como verdade. “En el momento de escribir prefiero la versión de la familia a la real, que se fugó con un hombre, que es algo que ocorre todos los días y que no trendría ninguna gracia“. A fala do autor também demonstra como o fantástico atua sutilmente para compor uma crônica social do continente.

Os nomes que se repetem e o tempo circular
São 22 Aurelianos, cinco Arcadios, três Remédios, uma Úrsula, uma Amarante e uma Amaranta Úrsula espalhados por sete gerações dos Buendía. A repetição dos nomes é uma das formas pelas quais García Márquez assinala o tempo circular que assola a família, fadada a repetir determinados comportamentos ou sofrer com as mesmas circunstâncias ao longo dos anos. Algo que não tinha notado até ler nos prefácios é que os Buendía têm descendência apenas pelo ramo dos José Arcadios, sempre empreendedores e meio desvairados, enquanto os Aurelianos pendem à solidão e à melancolia. A situação se inverte estranhamente quando o terceiro Arcadio tem filhos gêmeos e Úrsula desconfia seriamente que, de tanto brincar de trocar de identidade para enganar os adultos, Aureliano Segundo e José Arcadio Segundo ficam com os nomes trocados até a morte.

A incomunicabilidade nas relações humanas
Isolados, os macondinos fundadores se espantam com as novidades tecnológicas trazidas pelos ciganos, como o gelo e o ímã, mas ao mesmo tempo não se comovem nem um pouco com o cinema, que consideram uma enganação, com os seus atores que morrem numa película e ressurgem com roupas diferentes em outra. Há todo um sistema cultural específico naquele lugar perdido, e que os habitantes da cidade, com frequência, manejam de acordo com suas conveniências. É aí que entra a ironia cartesiana dos personagens. Quando um pretendente começa a dormir sob a janela de Remedios, a Bela, alegando que vai morrer de amor, ela chega à conclusão de que ele deve estar é doente, não apaixonado. Quando efetivamente bate as botas, ela confirma sua suspeita.

Gabriel García Márquez aparece em Cem anos (!)
De todas as descobertas dessa nova releitura, essa certamente é a melhor: Cem anos tem um personagem chamado Gabriel Márquez e o nome está longe de ser coincidência. Este Gabriel aparece quase no final do livro, quando o último Aureliano começa a frequentar a livraria do sábio catalão em busca de subsídios para traduzir os manuscritos de Melquíades. Lá, ele faz amizade com quatro rapazes, por meio dos quais descobre a literatura: Alfonso, Germán, Álvaro e Gabriel – este último, bisneto do coronel Gerineldo Márquez, companheiro de revolução do coronel Aureliano Buendía. Entre os quatro, é com Gabriel que Aureliano Babilônia estabelece a ligação mais forte, até que ele deixa Macondo para viver em Paris, como o próprio autor o faz na juventude. Os outros três amigos também são pessoas reais – eram os amigos mais próximos do Gabo real e têm, no livro, os mesmos destinos que construíram pra si na vida extra livro.

A melhor definição do livro
… é a de Claudio Guillén: 

Cien años libra una batalla descomunal contra las convenciones de nuestro tiempo y de nuestra sociedad, liberándonos a todos.

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2 comentários sobre “De volta a Macondo

  1. Conheci a obra no início do ano e simplesmente me apaixonei pela história – lendo o seu texto, já me bateu aquela saudade dela! Não tenho dúvidas de que, mesmo após várias releituras, “Cem anos de solidão” nunca se esgotará para mim… Abraço!

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