As lutas inglórias

O verso do título é do samba O mestre sala dos mares, composição de João Bosco, com poema de Aldir Blanc – que acaba de nos deixar, vitimado pela Covid-19 e pelo descaso daquele que deveria liderar o país em meio à pandemia. A linda canção pode ser escutada aqui, na versão imortalizada por Elis Regina. A letra é uma homenagem a João Cândido Felisberto, que em 1910 liderou a Revolta da chibata, quando um grupo de marujos se sublevou contra os castigos físicos impetrados pelos oficiais nos subalternos das Forças Armadas brasileiras, estendendo práticas que vinham da escravidão. Quando João Bosco gravou a música pela primeira vez, em 1975, teve a letra censurada e Aldir foi obrigado a mudar “marinheiro” por “feiticeiro” e “almirante” por “navegante” para atender aos “sábios” censores da ditadura militar. E é justamente nesse período dos anos 1970, nos anos mais duros da repressão, que se passa a trama de Pontos de fuga¸ segundo volume da trilogia O lugar mais sombrio, do escritor amazonense Milton Hatoum, lançado pela Companhia das Letras. O primeiro livro, A noite da espera, foi resenhado aqui. E fiquei dois anos na expectativa pela continuação da história de Martim, cuja primeira parte li em 2017. Lembro de encontro com Hatoum, realizado no primeiro semestre de 2019 na Biblioteca Parque Villa-Lobos, em que ele foi perguntado sobre a continuidade da trilogia. E declarou que estava se acertando com os personagens e com a complexa polifonia que montou para contar a história de seu protagonista.

Pontos de fuga capa

Estamos diante de um grande romance de formação. Se na primeira parte assistimos à separação dos pais e ao sumiço da mãe de Martim, com uma abrupta mudança para Brasília, começamos a parte 2 da trilogia no ano de 1972, em São Paulo. De volta à capital paulista, aprovado no vestibular para arquitetura na USP, Martim vai parar em uma república na Vila Madalena. Ali é o epicentro da história de Pontos de fuga. Como no primeiro volume, temos uma profusão de vozes narrativas. Trocas de cartas entre as personagens se alternam com recordações de Martim, escritas no exílio, já no começo dos anos 1980.

A casa da rua Fidalga aparece na vida de Martim alguns meses depois de sua chegada a São Paulo. Primeiro, ele tem uma conturbada hospedagem em um seminário dos padres Maristas, na Vila Mariana. Ali começa a entender os acontecimentos políticos e a agitação no meio estudantil, enquanto milhares de pessoas são presas, torturadas e, muitas, mortas nos porões dos presídios e do DOI-CODI. As andanças de Martim e as novas amizades, além das conexões com antigos amigos de Brasília, são entremeadas por fatos históricos, como as morte de Alexandre Vanuchi Leme, Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho e a violenta invasão à PUC. As divisões nos grupos políticos e as divergências sobre os métodos de combate ao regime também aparecem nas conversas e trocas de cartas que incluem o Chile, a Bolívia, famílias abastadas em Brasília e nos Jardins, em São Paulo, que colaboram com a resistência. E o castelo de cartas que vai desmoronando com a prisão de amigos, fugas repentinas e clandestinas para o exílio, o que também acaba acontecendo com nosso heroi.

E como nem só de política vive Martim, aparecem as dúvidas sobre a carreira de arquiteto, a obsessão por Dinah, a ex-namorada de Brasília que ressurge em sua vida e, principalmente, a busca incessante e por vezes delirante, de pistas sobre a mãe, misteriosamente desaparecida no interior paulista no final dos anos 1980.

Hatoum maneja habilmente os fragmentos, com um cuidado estilístico para que cada uma das vozes narrativas tenha seu linguajar próprio. Por vezes, nem é preciso ver o cabeçalho do capítulo para saber qual personagem está escrevendo cartas ou relatos. O segundo volume demorou a chegar e me pareceu ainda mais lapidado e bem acabado que a primeira parte, deixando no ar a espera ansiosa pelo terceiro e último romance, que deve entrar já nos anos 1980. A curiosidade é imensa para saber o quão próximo de nossos dias ele trará a história de Martim.

Pontos de fuga se passa sobretudo na minha vizinhança e até cita a rua em que moramos, que faz ligação de Pinheiros com a Vila Madalena. Relata um bairro que já concentrava uma turma de estudantes, cineastas, artistas e outros bichos. Mas que ainda era pacato, com chácaras que produziam hortaliças, terrenos vazios, sobradinhos, quitandas e botecos muito simples. Entre os personagens, um inusitado caçador de pombos que vendia as aves para consumo humano pelas ruas do bairro.

E para justificar o porquê do verso das lutas inglórias, lembro que a trilogia de Hatoum chegou em um momento de publicação de muitos e ótimos livros de autores brasileiros que estavam se debruçando sobre os anos mais sombrios da ditadura civil-militar que dominou o país entre 1964 e 1985. São espaços literários para a reconstrução da narrativa desse período a partir de quem lutou contra a repressão e pelo estabelecimento do Estado Democrático de Direito, com a reconstituição de histórias de pessoas mortas e desaparecidas, como por exemplo em K. de Bernardo Kucinski, que resenhei aqui, nos primórdios do blog. Uma espécie de acerto de contas com o passado e, talvez, um desejo coletivo de que nunca mais fosse possível falar em ditadura militar entre nós. Porque lutar contra um regime tirânico, qualquer que seja ele, é uma luta inglória, mesmo quando vencida. O desejo de todos que amam a Liberdade e a Justiça é de lutar para melhorar a sociedade e essa é uma luta alegre, mesmo que sejam lentos os avanços. Já o combate ao retrocesso é dolorido e, sob forte repressão, vidas são perdidas. Mas, como diz a canção, jamais esqueceremos essas lutas inglórias, mesmo que estejamos de novo mergulhados em um pesadelo de retrocesso, no qual armas, patentes militares, desejos toscos de repressão dos costumes, tentativas de censura à arte e muitas outras barbaridades voltam a nos assombrar. Que o terceiro volume nos encontre em outro patamar de lutas.

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