A exposição Desobediências poéticas de Grada Kilomba na Pinacoteca foi um dos grandes acontecimentos culturais de São Paulo no ano passado, mesmo que tenha se resumido a quatro instalações – uma em cada canto do segundo andar do edifício, nas esquinas da exposição de longa duração que traça um panorama da arte brasileira – arte feita principalmente por pessoas brancas, é bom lembrar, já que a artista portuguesa e negra faz uma crítica contundente à normalização branca na sociedade e na construção da cultura.
Duas instalações-irmãs me impressionaram especialmente: são duas narrativas em vídeo, cada uma com duas telas; em uma, pequena e lateral, Grada lê ensaios seus sobre os mitos de Narciso e Édipo; na outra, atores negros (incluindo ela própria) interpretam a narrativa contida nos ensaios sobre um fundo absolutamente branco, com poucos objetos de cena. Dois dos mitos fundadores da cultura na sociedade ocidental são então destrinchados em tudo o que contribuíram para construção de uma ideia da branquitude como normal, e da existência negra como o perpétuo e genérico “outro”. Eram vídeos bem longos. Não vi ninguém saindo da salas, em nenhum deles, mesmo quem precisou assistir sentado no chão por causa do número de pessoas no espaço.
Grada não é só artista visual; é também pensadora, professora universitária e escritora. As bases do que vimos na Pinacoteca estão em Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (editora Cobogó), livro em que ela aprofunda a ideia de como o verbo corrobora para a construção de um mundo racista. Tem muito da exposição nesse texto, que considero dos mais fundamentais para entender a questão racial no mundo e, especialmente, nos países que mantiveram uma relação de metrópole/colônia – como Portugal e Brasil. Segundo Grada, o que se observa nesses países é a contínua “reencenação do passado colonial”, ou mesmo glorificação desse passado, que promove realidades traumáticas no cotidiano de pessoas negras.
Um exemplo pessoal da escritora: pré-adolescente, ela foi a uma consulta com um médico que tinha várias máscaras africanas como decoração em seu escritório. Ao fim da consulta, ele pergunta a Grada se ela não gostaria de passar o verão com a família dele numa praia, cuidando dos filhos do casal. Ela, claro, teria tempo de passear também. Assim, do nada.
Grada então problematiza: como se daria a cena se fosse
– um médico branco com uma menina branca
– um médico branco com um menino branco
– um médico branco com um menino negro
– uma médica branca com uma menina branca
– uma médica branca com um menino branco
– uma médica branca com um menino negro
– uma médica branca com uma menina negra
– um médico ou médica negros com um menino ou uma menina brancos
Em quais destas situações o profissional acharia absolutamente normal convidar um paciente pré-adolescente para trabalhar no verão cuidando de crianças numa praia? Assim como Angela Davis, Grada também parte do princípio de que raça e gênero são indissociáveis quando falamos das dinâmicas sociais. Por isso, seu livro é baseado em suas próprias experiências pessoais e nas de outras três mulheres negras – uma chacoalhada deliberada no modus operandi da pesquisa acadêmica, que costuma advogar por neutralidade e distanciamento do objeto de estudo. De maneira muito pouco surpreendente, Grada é acusada de ter um ponto de vista muito subjetivo, pessoal e específico, ao que responde:
“Quando acadêmicas/os brancas/os afirmam ter um discurso neutro e objetivo, não estão reconhecendo o fato de que elas e eles também escrevem de um lugar específico que, naturalmente, não é neutro nem objetivo ou universal, mas dominante. É um lugar de poder”.
Dessa forma, a Academia também contribui para a perpetuação do que chama de “fantasias brancas de como o sujeito negro deveria ser”. Por isso, considera que racismo não surge da falta de informação, mas da projeção branca sobre o outro negro. Assim, passar de objeto a sujeito do seu ensaio marca a escrita como ato político.
Outro ponto basilar de Memórias da plantação é o princípio de que o racismo não é biológico, mas discursivo, e se dá principalmente através da linguagem. O livro foi escrito originalmente em inglês e, para a edição em português, Grada escreveu uma longa introdução problematizando termos como subject, object e other (que não têm gênero em inglês, e são transpostos para o português para o masculino), negro e negra, mestiça/o, mulata/o, cabrita e vários outros, explicando em alguns casos porque optou, no texto do ensaio, a substituí-los apenas por sua letra inicial – N., por exemplo.
“Por mais poética que possa ser, [a língua] tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através de suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana.”
Para a autora, novas linguagens precisam surgir na língua portuguesa para dar conta de novas configurações de poder e conhecimento. Enquanto isso não acontecer, o racismo cotidiano continuará colocando pessoas negras como o paradigma do outro, deixando de ser ela mesma para ser esse outro idealizado – aquele que deve servir, ser seguido dentro de lojas, abordado pela polícia ou ocupar o famigerado quarto da empregada (e nunca empregado, percebem?). O racismo é cotidiano porque uma experiência permanente, fluida e traumática, que está longe de se restringir a acontecimentos isolados.
É impossível deixar de fazer uma relação entre esse livro e o caso de Miguel, menino de cinco anos, filho de uma empregada doméstica, que morreu esta semana ao cair do nono andar do prédio de luxo onde mora a patroa da mãe (branca), no Recife. A trabalhadora foi convocada a permanecer no serviço mesmo em plena pandemia de coronavírus, levou o menino e Miguel morreu ao se perder no prédio, depois de ser colocado no elevador, sozinho, pela mesma patroa, impaciente porque ele estava chorando com saudade da mãe. A mãe estava passeando os cachorros da patroa, que fazia as unhas com um manicure, também convocada a trabalhar em plena pandemia.
Como resumo da ópera, deixo o post da amiga Joana Rozowykwiat, que viralizou esta semana em várias redes sociais.
A patroa pagou fiança e vai responder ao processo em liberdade – como aliás, está correto do ponto de vista jurídico e processual. Democracia é isso também, não ceder aos impulsos de justiçamento. Imperdoável, MESMO, foi a tentativa da imprensa pernambucana de proteger a identidade da patroa – Sarí Gaspar Côrte Real, esposa do prefeito de Tamandaré, do mesmo partido do governador de Pernambuco. Como disse a própria mãe da criança, emulando sem querer o exercício feito por Grada Kilomba após a consulta ao médico – e se fosse o contrário? E se tivesse sido a criança branca aos cuidados da empregada negra a cair do nono andar do edifício? A imprensa teria sido tão cuidadosa?
Hoje é o 82º dia do isolamento social em São Paulo por causa do coronavírus, a pior semana desde o início desse inferno, pois a morte de Miguel escancarou o que tantos de nós já sabíamos – ficar em casa e se proteger é um privilégio para poucos. Termino essa semana do cão com uma última citação a Grada Kilomba e a forte recomendação que você compre e leia o livro:
“Em vez de fazer a clássica perguntar moral ‘Eu sou racista?’ e esperar uma resposta confortável, o sujeito branco deveria se perguntar ‘Como eu posso desmantelar meu próprio racismo?”
PS: a foto em destaque foi feita por Carlos Carvalho, porque eu, idiota, só registrei a exposição de Grada com fotos na vertical para Stories. Trouxa.
E aí? Comprando o livro na Amazon por este link, você aprende um pouco mais sobre os mecanismos do racismo e ajuda a manter o Lombada Quadrada.
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