Encarei as mais de 170 páginas de O farol do fim do mundo em edição para Kindle, no original, em francês. Parte do exercício para não perder o investimento de anos de Aliança Francesa e manter o vocabulário nessa língua de que tanto gosto.
Fui a este livro, em especial, por ele não estar entre os mais conhecidos e óbvios na extensa obra de Verne. E foi uma grata surpresa. Trata-se de uma história que vai além das maravilhas técnicas, tão apreciadas pelo romancista. É uma lição de ética e solidariedade. Explico isso mais adiante, mas, antes, vamos ao contexto, (quase) sem spoilers.
O fim do mundo do título é a Ilha dos Estados, uma das inúmeras formações que compõe o perigoso elo que liga os oceanos Atlântico e Pacífico no extremo sul do continente americano, ali, perto da Antártida. E não muito distantes de Ushuaia, cidade argentina que se orgulha de estar no fim do mundo.
Estamos no século XIX e a navegação por aqueles caminhos sujeitos a tempestades, com placas de gelo flutuando a esmo,ventos fortes e ondas gigantes é intensa. Não existe ainda o canal do Panamá e o Estreito de Magalhães é o ponto de passagem mais tenso e perigoso das longas jornadas de travessia entre os oceanos.
Verne não projeta o futuro e nem máquinas mirabolantes. Ele nos conta sobre a construção e a operação de um farol movido a diesel – uma maravilha contemporânea à sua obra -, erguido por ingleses, franceses e argentinos para orientar os navios que passam por aquelas latitudes inóspitas.
Acompanhamos a vida de Vasquez, Felipe e Moriz, três experimentados marinheiros que são destacados pelo governo argentino para os primeiros seis meses de operação do farol. São deixados na ilha com suprimentos, munição e, claro, vinho e conhaque suficientes para um longo inverno, até que venham ser rendidos no verão seguinte por uma nova equipe. A rotina do trio é minuciosamente descrita na primeira parte do romance. Como é de costume na obra de Verne, entendemos a geografia do local, o clima, as marés, os ventos e os detalhes técnicos do fascinante farol, cuja luz é irradiada a dezenas de quilômetros para garantir a segurança da navegação.
Um dos muitos obstáculos que a região oferece aos navegadores é a pirataria. Nada melhor para os bandoleiros do mar do que um caminho estreito, cheio de intempéries e cercado de nada. É o lugar ideal para pilhagens. Sem contar que a falta de orientação para navegações faz da região um celeiro de naufrágios, choques contra rochedos e, bingo, destroços e riquezas disponíveis sem precisar disparar uma bala sequer.
E eis que conhecemos Kongre e seus asseclas. Piratas dos mais perigosos, que mantém os frutos de suas pilhagens escondidos em uma caverna da Ilha do Estados. A chegada do farol é um risco para seus negócios ilícitos. Sem navios perdidos em suas rotas, as abordagens ficam mais difíceis.
Para resolver esse problema concorrencial eles tomam de assalto o farol. Matam Felipe e Moriz. Vasquez, ao perceber a ação, consegue fugir e encontra abrigo em uma caverna. Abrigo e provisões deixadas ali pelos piratas.
Começa então uma longa jornada, uma brincadeira nada engraçada de esconde-esconde.
E é aí que entra em cena a Ética. E o farol como alegoria do caminho certo a seguir. Vasquez não capitula. Sabe que em poucas semanas chegará um navio militar com provisões, armas e, certamente, a possibilidade de capturar os piratas. Cercado de alimentos, ele poderia escolher simplesmente a espera silenciosa. Mas ele quer Justiça para seus companheiros. E passa a acompanhar a rotina dos bandidos que tomaram as instalações do farol, desligaram sua luz, e se preparam para deixar a ilha com o navio carregado de tesouros. Vasquez arruma artimanhas que impedem a saída dos piratas por várias vezes. Sozinho praticamente até o final da jornada, quando então ganha a companhia de um náufrago inglês, o argentino arrisca sua vida diariamente para evitar a fuga e a impunidade dos assaltantes e assassinos.
Verne vai ao fim do mundo, em uma narrativa que ganha ritmo à medida que avança para seu desfecho, para construir uma história repleta de significados morais. É uma grande aventura, recheada de ciência. Mas é sobretudo um livro humanista.
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