Descobri ali pelos anos 1990 que a canção Cajuína, de Caetano Veloso, era uma homenagem ao poeta piauiense Torquato Neto, de quem tinha poucas referências, mais como parceiro eventual do próprio Caetano e de Gilberto Gil no auge do movimento tropicalista. Uma coisa era certa. Não é qualquer um que ganha uma canção tão linda, certamente uma das mais belas músicas de todo o cancioneiro popular deste planeta. Se não conhece ou não lembra, clique aqui para conferir essa beleza.
Ao saber quem era o menino infeliz da canção, também soube que ele se suicidou aos 28 anos, no começo dos anos 1970. E só.
De lá pra cá, entendi que Torquato Neto foi um dos pilares do movimento tropicalista. Não apenas com as letras de canções como Geleia geral, Mamãe, coragem, Pra dizer adeus e tantas outras, que ganharam gravações de Gil, Gal, Caetano, Bethânia, Edu Lobo, Elis Regina, Noite Ilustrada entre outros. Ele também foi cabeça pensante do movimento, fazendo pontes entre o quarteto baiano e a cultura pop e fazendo de sua coluna no Jornal do Brasil a voz do Tropicalismo.
Mas Torquato Neto sempre foi pra mim uma referência fugaz, como na polêmica que Jards Macalé levantou ao dizer que Caetano e Gil abandonaram o amigo. Ou nas efemérides ligadas à morte ou nascimento, quando seu nome vinha à tona nos cadernos de cultura. Confesso que ignorei Torquato por longos anos, talvez com uma certa reserva advinda do modo como Jards Macalé tentou achar culpados para o suicídio.
E eis que neste 2018, Torquato apareceu de novo. Primeiro, com o lançamento do elogiado documentário Torquato Neto – Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernandes, ainda em cartaz e que pretendo ver em breve.
E surgiu também na lista de lançamentos da Global Editora a coletânea Melhores poemas, organizada pelo escritor e crítico cearense Cláudio Portella. Resolvi ir à leitura.
A edição em formato pocket limita um bocado as possibilidades de um design ousado, em que vários poemas poderiam ter diagramação, fonte e papel mais refinados para dar conta das intenções gráficas do poeta, que teve um namoro consistente com a poesia concreta. Só que vivemos no país do custo alto para se fazer um livro, dos raros leitores e das tiragens limitadas. Então, quando nos chega uma nova edição de um poeta tão falado e, provavelmente, tão pouco lido, só podemos comemorar.
A leitura de Melhores poemas foi repleta de descobertas. A primeira é da abrangência de sua obra como letrista de MPB. Para quem sempre achou que ele tinha sido parceiro de uns poucos músicos da Tropicália, a surpresa vem em descobrir composições feitas ainda em vida com Edu Lobo, Luis Melodia e Geraldo Azevedo. E as parcerias póstumas com Chico César, Fagner e Zeca Baleiro. E, para meu espanto, com os Titãs. Mais precisamente com Sergio Britto, que musicou alguns poemas, entre eles, o mais célebre, “Go back”, sim, aquele que diz “não tenho tempo a perder, só quero saber do que pode dar certo”.
A musicalidade de Torquato é a faceta mais evidente de sua obra. E as letras dessas canções, seja em clássicos como “Louvação” (sim, também é dele) e “Geleia Geral”, ou em canções de dor de cotovelo como “Pra dizer adeus” parecem revelar um poeta ativista, resistente à ditadura que então dominava o país e, por vezes, romântico. Sem contar o lado jornalístico de diversos poemas, revelando a influência do trabalho de Torquato em redações cariocas como a do Jornal dos Sports ou do Jornal do Brasil, onde manteve a coluna “Geleia geral”.
O menino infeliz do verso de Caetano paira sobre o conjunto da obra de Torquato.
Tristeza, melancolia, desencanto e um flerte constante com o suicídio aparecem nos poemas selecionados para essa coletânea. Desde os primeiros versos, no começo dos anos 60, até aqueles escritos perto do fim da vida, na passagem dos 60 para os 70 a morte está presente.
Dependente químico, nascido em uma família de classe média, com uma carreira brilhante no jornalismo e uma produção poética que era respeitada e reconhecida pela crítica, o poeta vivia seu tormento entre várias internações psiquiátricas e períodos em clínicas para desintoxicação. Seu pai, certa vez, disse que desde menino Torquato namorava com a ideia de dar fim à própria vida.
Torquato deixou uma obra relativamente extensa. Não publicou em vida uma coletânea que ele mesmo tenha organizado. A julgar pela seleção feita para esta edição, tampouco há em sua obra conjuntos de poemas que tenham uma ligação temática.
Ele se aproxima do concretismo, rompe radicalmente com a rima em muitos de seus poemas, coloca elementos do cotidiano, com um olhar jornalístico apurado, em muitos de seus textos que podem ser lidos como prosa ou poesia. Traz um pouco de Teresina e do Piauí, mas é também um poeta do mundo, do cotidiano da grande cidade, do Rio em que viveu e da Paris que conheceu.
Dialoga com Drummond, em um genial poema em que tenta imaginar o que José responderia a CDA, manda um “Bilhetinho sem maiores consequências” para Vinícius, com essa tirada genial:
Uma retificação, meu caro Vinícius:
você falou em “bares repletos de homens vazios”
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios
homens cheios.
(e você vem sabe)
Entulhados da primeira à última geração
de imoralidade desta vida
as cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinícius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizaram os fatos.
E você
que os conhece de tão perto
Vinícius ‘felicidade’ de Moraes
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tal falsa humanidade.
Com uma admiração “deste tamanho”.
Ele “mandou” esse bilhetinho a Vinícius do alto de seus 18 anos. Essa ousadia está presente nesta seleção, que traz informações sobre a data de publicação dos poemas, as canções originárias de seus textos e uma linha do tempo que vem até 2015, destacando gravações, homenagens, estudos acadêmicos, parcerias póstumas e produção audiovisual em torno desse poeta que “é um homem lindo”, o menino infeliz.
Só despertou a vontade de conhecer mais quem foi Torquato.
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Viva Torquato!
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Obrigado pela leitura. E viva Torquato!
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Apenas um pequeno reparo: Caetano relata que o que inspirou a canção, na verdade, foi o pai de Torquato, que ele conheceu numa visita a casa do artista, que não se encontrava no momento. Mas sim, o “menino infeliz” a que ele faz referência na letra é o próprio Torquato.
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Oi, Armando. Obrigado pela observação.
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