Em abril de 2013, um jovem de 17 anos foi encontrado inconsciente e bastante machucado no pátio de uma casa vizinha a um condomínio de luxo em Porto Alegre. Eduardo Fösch dos Santos tinha ido a uma festa com amigos, mas terminou a noite em coma em virtude de um traumatismo cranioencefálico; ficou assim por nove dias até morrer no hospital. Numa festa de brancos, num condomínio de brancos localizado em uma cidade de brancos, a pele negra de Fösch o tinha colocado, ao que parece, no lugar errado. O caso foi tratado como morte acidental (Eduardo teria caído sozinho no pátio). Poderia ter terminado assim não fosse a persistência da família contra a omissão do sistema de justiça, provocando a reabertura da investigação.
Esta é o mote de Entre lembrar e esquecer, romance que colocou Mauro Paz (editora Patuá) no rol de finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura. A partir desta história real, ele cria sua ficção como um exercício para entender os fatores sociais que levaram não só ao crime, mas à conivência institucional que buscava a impunidade como desfecho. Mais do que isso, constrói um frágil jogo psicológico tendo a memória como base, como alude o título do livro. Esta é a grande sacada de Mauro Paz: sua matéria é o efeito do racismo sobre o mundo interior de um indivíduo para quem sobreviver com sanidade significa, muitas vezes, enterrar parte de suas lembranças.
Cesar, o personagem narrador, é o tio de Cadu – o jovem ficcional que representa Fösch no romance. A partir do momento em que é comunicado da morte do rapaz e de suas circunstâncias estranhas, César começa a pensar em sua própria trajetória como negro numa cidade majoritariamente branca, cuja população costuma se orgulhar de suas origens europeias e de seus sobrenomes estrangeiros. Quando Cadu nasceu prematuro, César lembra de ter pensado: “pois mais forte que se tornasse, nada apagaria o fato de que nasceu negro”.
César é jornalista em São Paulo e seu irmão Douglas, pai de Cadu, engenheiro em Porto Alegre. Para todos os efeitos, ambos pertencem à classe média dos profissionais liberais esclarecidos. Chegaram até ali a partir do esforço do pai taxista, que pouco falava, numa invisibilidade e conformismo autoimpostos que funcionavam como escudos para a família. César e Douglas estudaram em uma boa escola como bolsistas, mas pagaram outro preço por este acesso: ser os únicos negros em todo o corpo discente os transformou nos alvos prediletos de bullying e rotulações fáceis, que seguem por toda a vida.
“Não importa quanto dinheiro você tenha. Não importa se seu pai é um engenheiro de vida remediada, como Douglas, um lixeiro ou um jogador de futebol milionário. Ao nascer negro, você cedo ou tarde será tocado pelo racismo. Até porque, para a maioria das pessoas, é inconcebível ser negro e bem-sucedido. Ou mais simples, é inconcebível ser negro e não morar em uma favela ou ter, no mínimo, um primo distante envolvido com assalto a banco ou tráfico de drogas”.
Os episódios do preconceito cotidiano e o racismo institucional que envolve a investigação pelo assassinato de Cadu são fruto da mesma fissura social ainda não resolvida no Brasil (talvez em nenhum lugar do mundo), como vai percebendo o personagem. Embora consciente do problema, isso não o torna menos real ou dolorido. Em um determinado trecho, recordando o período da escola, César lava o rosto e se olha no espelho, notando seus cabelos encaracolados, lábios largos e pele negra. O racismo é sobretudo relacional, ele se define pelo olhar do outro. Nesse sentido, uma sociedade preconceituosa é o maior e o mais cruel espelho que pode existir, um espelho que provoca não apenas barreiras e violências cotidianas, mas também capaz de ser o gatilho de profundo sofrimento interior.
De escrita quase jornalística, Mauro Paz tem texto direto e enxuto, que emula a profissão do personagem. Entre as digressões de sua infância e juventude, César não deixa de também analisar o contexto histórico e social que resultaram no racismo e na morte do seu sobrinho, como quando remete à colonização e ao escravagismo a origem da violência, tida como um dos grandes problemas atuais do Brasil: “(…) a mão branca, que sempre bateu, tem medo de perder o relógio. Dividir o poder incomoda. Principalmente dividir o poder da violência, da força bruta, do braço que cala a boca. (…) O problema são mais de quinhentos anos de história a ruir sobre nossas cabeças”.
O caso de Eduardo Fösch segue não resolvido até hoje. Entre lembrar e esquecer é também uma forma de impedir que o jovem seja esquecido, numa literatura que é manifesto e é também tributo. Assim como toda a obra da ruandesa Scholastique Mukasonga e pelo menos Garotas mortas, de Selva Almada, a obra de Mauro Paz é como uma rosa deixada sobre o túmulo de alguém que, de outra forma, teria sido condenado ao esquecimento social deliberado.
PS: a imagem em destaque é um detalhe da obra Amnésia, de Flávio Cerqueira, exposta na excelente exposição Histórias afro-atlânticas, em cartaz até 21/10/18 no MASP. Parte da mostra também está no Instituto Tomie Ohtake.
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